Dia 0 ano 0; Dia 1 ano 2019

Talvez tenham razão os que digam que nossa geração precisa se repensar drasticamente em face dos últimos acontecimentos. Isso, em particular, se mostra verdade para aqueles que, como eu, estão dentro de qualquer tipo de sistema cujo tratamento deixará de ser o de serviço para ser o de favor, deixará de ser o de direito para ser o de concessão. Somos uma legião, de fato, e de fato continuaremos sendo. E, ainda que nos esforcemos para pensar que basta seguirmos vivendo nossas vidas para que se configure algum tipo de resistência, a verdade é que estamos em uma encruzilhada onde novas formas de visibilidade e de dizibilidade (valeu, Rancière) se impõem como necessidade primeira do dia, para que reconfiguremos mesmo a maneira como nos pensamos enquanto indivíduos e grupos sociais no meio deste furdunço todo. E para que, em última instância, não nos afoguem em nossas próprias palavras e imagens que talvez não queiramos largar de forma alguma, mesmo com o naufrágio iminente do navio.

Mas voltemos um pouco. Até ao menos o marco que é este dia 31, quando eu escrevo e penso e, mais que tudo, sinto.

O resumo da questão geracional que aqui coloco à luz parece se configurar, pois, como o seguinte: todos que, como eu, cresceram nos governos petistas - literalmente, pois, quando Lula assumiu eu tinha incríveis 7 anos de idade - precisam se pensar pela primeira vez sem nenhum tipo de respaldo institucional para suas ações, suas ideias, seus planos. Isto é um fato, e as notícias sobre o sistema S - que chegou onde parecia ter pretendido chegar, diga-se de passagem - atestam isso. Nos últimos anos, minha geração aprendeu a sempre contar com a possibilidade de ser resguardada, de alguma maneira, pelo Estado, de imaginar a existência prestativa de uma bolsa, de um edital, de um projeto, de uma instituição pronta a nos acolher. Agora, estamos de fato sós. E este movimento, assim como sua consciência, parece presentificar o instante do gozo neoliberal sonhado há décadas, hoje a se realizar entre goles de champagne nas altíssimas sacadas: súbita e não-anunciada, neste dia 1º temos - para alguns - enfim a possibilidade de realização da cobiçadíssima ideia de indivíduo que nos conta como produtos em busca de melhores prateleiras para se expor. Nisto vive nossa nova versão do absurdo machadiano, as ideias jamais fora de um lugar, mas se arranjando sempre de acordo com os mais sinistros maestros.

Que me respondam como é possível, do dia para a noite, conceber o Brasil como a realização de uma sociedade liberal, criada por isso, para isso e a partir disso. E eu responderei que é necessária uma injeção cavalar de cinismo. Na testa.

Mas antes que o discurso apocalíptico assuma a voga, e que pensemos que estamos de fato em 1964 - ali, quando nem o mais otimista militar imaginaria que o Brasil seria uma ditadura por 20 e tantos anos -, procuremos um caminho razoável para entender nossa situação. Hoje, eu sinto que este caminho é o da historicidade. Pois a verdade é que, diante das ideias que circularam neste país nos últimos anos, e das quais pouco conseguimos aproveitar - como os resultados das urnas comprovam - pode parecer que este 1 cravado no calendário marca, em verdade, o dia 0 do ano 0 da era do desbaratamento de nossos sonhos. Messiânico, de fato. De perto, é como se estivéssemos contrapondo bruscamente duas realidades incompatíveis e antagônicas, geradas ambas no nada e resultando ambas em um projeto de Brasil em tudo distinto. E no entanto, creio que não é de nada disso que se trata. Tampouco da incensada autocrítica da esquerda (apesar de se impor algum tipo de reflexão sobre os termos em que, até hoje, ocorreu esse apoio institucional de que vinha falando) que muitas vezes assume um tom calhorda como nos papagaios que berram motes como "o vice dela era o Temer" ou "o PT colheu o que plantou", e dormem sossegados. A questão é sobre esticar os limites da visão, me parece.

Resultado de imagem para posse ditadura

O que este momento de efetiva transição de um governo feito por políticos para um governo feito por lunáticos parece significar, antes de tudo, é que nada aprendemos até hoje enquanto país. Ou ainda, em termos concretos, que o Brasil nunca constituiu de fato uma República, mas sempre traiu a si mesmo quando teve a oportunidade de fazê-lo. Guerra do Paraguai, Canudos, Pereira Passos, Porongos, Ciclo da Borracha, Estado Novo, construção de Brasília, Transamazônica, AI-5, Serra Pelada, Carandiru, redemocratização militarizada, Eldorado dos Carajás, Belo Monte, Rio Doce, Rafael Braga: são inúmeros exemplos de momentos em que é possível ver como, de dentro de seu próprio corpo, nossa República se mostrou institucionalizada com base unicamente em letra fria. Ou, pior que isso, em aparente letra fria. Porque, tudo o que se fez de desastroso neste país, de contrário aos direitos humanos e à dignidade de grupos sociais, deu-se a partir de um mando, de um projeto de lei, de uma emenda. Não é como se, para propor o massacre, tivéssemos que, por breves instantes, abrir mão da República: a própria República se escreveu ou concebeu tendo em seu seio a autorização implícita para atirar em nossas cabeças.

Neste sentido, o que vivemos hoje não é tão novo assim. E creio que um títere como Jair Bolsonaro - não à toa amparado por alguém como Sérgio Moro, nosso Chico Ciência de Facebook - não merece sequer o prestígio de balizar um momento histórico que fosse, em suas causas e efeitos, de fato novo. Este momento, portanto, é novo unicamente para nós, que nos acostumamos a algo distinto. Não é novo para em Graciliano Ramos preso nos porões de um navio com os pés afundados em mijo, não é novo para em Jards Macalé encarcerado na Papuda - o mesmo lugar onde hoje está Geddel Vieira Lima, e que se note o absurdo desta justaposição. Nosso desespero - mais que justificado - surge unicamente pela impressão de que precisamos urgentemente buscar novas formas de vida e de existência para que não desapareçam com nosso corpo. Algo que nosso estreitamento de horizonte histórico, nossa letargia nos últimos anos postergou até este instante, até esta virada em que todos os fogos de artifício parecem comemorar unicamente nosso glorioso desamparo.

Mas, diante da perspectiva histórica deste país, não há desespero que se imponha de vez. Nós temos que fazer hoje o que sempre tivemos que fazer, mesmo nos momentos em que aparentemente estávamos na melhor. A diferença é que, agora, precisamos de ostensividade nisso, de performance e de presença para nossos atos. Porque não haverá quem nos console quando percebermos que talvez nossos sonhos não se realizem da maneira como estávamos imaginando. A não ser nós mesmos, sem instituição, sem cargo comissionado. Mas com nome, e voz, e corpo. E história pra se inspirar, e contra-inspirar.

O autor também faz parte desta demanda, é claro. E só acaba de dizer algo que, no fundo, você também poderia lhe dizer com o mesmo assombro.

Feliz dia 1º, meus amigos. Estamos todos vivos.

Comentários