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Ladrões de Cinema (Fernando Coni
Campos, 1973) é um filme indispensável na genealogia do audiovisual brasileiro.
Para além de ser uma obra que se propõe a pensar a realidade material do
Brasil, o filme de Coni Campos é um raro testemunho do cinema a tematizar suas
próprias condições éticas e de produção: isto é, colocar em jogo no “resultado”
aquilo que seria seu “princípio”, desde já acabando com este esquema teleológico
ao turvar a ordem pretensamente natural das coisas: negando que haja uma realidade
que exista antes do filme, que se suspenda ao longo da obra, que retorne então
depois dela. A maneira como se usa a palavra contexto correntemente, afinal.
Tem-se
aqui em questão, pois, um filme que retrata, no plano ficcional, o processo de
realização de outra obra
cinematográfica, seus percalços e seus ganhos estéticos. Seria possível então,
assim em abstrato, pensar que se veja na tela o processo de preparação de atores,
de decisões sobre roteiro, a dificuldade de circulação da obra. Mas – e esta é
a grande sacada do filme – Ladrões de Cinema parte de algo que Coni percebe
como muito mais fundamental para o processo de criação de qualquer obra a
partir de um país como o Brasil dos anos 1970: a relação de classe que viabiliza
ou inviabiliza a própria possibilidade de realização artística. O evento que
desencadeia a produção do filme por parte dos moradores do morro do Pavãozinho
é, assim, o roubo da aparelhagem – câmera, gravadores, rolos de filme – de
alguns americanos que rodavam um documentário sobre o carnaval carioca.
Apropriação dos meios de produção, com perdão da citação. A partir disso, então,
surge no filme a discussão sobre vender os aparatos para ganhar algum dinheiro
ou utilizá-lo para criar uma obra sobre o que se desejasse, ideia que
evidentemente vence.
Tendo
o aparato material devidamente apropriado, começam as discussões sobre o que
fazer e como fazer. Aqui então surge mais um salto interessantíssimo da obra de
Coni Campos: não duvidar da sensibilidade dos malandros, mas mostrar como a
familiaridade com a cultura popular e a vida social da periferia faz com que as
questões técnicas da obra sejam mera questão de tempo, de adaptação. A escolha
por filmar a história de Tiradentes, utilizando o próprio morro como cenário, é
outro ponto muito interessante – este tomar posse da história oficial a partir
dos termos da sua – e dialoga criticamente com a proliferação de filmes
históricos nesta época – estes sim partidários da história nacionalista,
oficial – com muito apoio do governo e de sua agência, a Embrafilme (aliás, é
preciso urgentemente um debate sério – sem as babaquices liberais do “gosto
popular” – sobre os limites e possibilidades de um sistema cinematográfico majoritariamente
fomentado pelo Estado. Mas isso é outra história).
Resumindo
a dança, está em jogo em Ladrões de Cinema a história de como as condições
materiais restringem, no presente, os meios para circulação da sensibilidade
dos grupos e individualidades – algo que recentemente tentou-se trabalhar em Pacarrete (Allan Deberton, 2019), sem
sucesso. Ao ter acesso às condições materiais – não importando a maneira, e
disso lembramos por exemplo da incrível história surgimento do movimento
Hip-Hop –, tem-se a irrupção de obras que trabalham temas e modos de dizer
inovadores, críticos, sensíveis, contrariando qualquer sociologismo sobre o
“gosto do povo”. Este movimento de democratização das condições de produção
pode se dar, sinaliza o diretor, por alguma forma de solidariedade de classes
como, no filme, a do francês – Jean-Claude Bernardet faz este papel, e isto é
brilhante – que dá aos rapazes do morro alguns rolos de filme. Aqui não somos
tão adeptos desta ideia, é claro.
O
filme de Coni Campos parece ser, no entanto e a despeito da possível união
entre classes, extremamente pessimista quanto à possibilidade de vermos na
sociedade brasileira algo análogo à realização do Tiradentes filmado no morro
do Pavãozinho: no final do filme, o braço armado do Estado surge para prender
os realizadores pelo roubo dos aparelhos, enquanto seu filme é exibido com a
logomarca do Brasil – aqui podemos falar de fato de algum tipo de apropriação:
a da história dos vencidos pela dos vencedores – cinemas mundo afora. O Estado
não parece estar interessado em superar as condições materiais em que se
encontra, mas reiterá-la por se favorecer dela: desta forma, também interessado
em delimitar os rumos e limites do “popular” e do “oficial” ou “erudito”.
Note-se,
enfim, como há na obra uma sinalização para a ligação imediata entre, por um
lado, o que se diz, como se diz, por que se diz e, por outro lado, as condições
materiais do dizer. Isto não está para além do filme ou é mera sociologia da
arte, mas é parte incontornável da experiência estética, porque determina a
própria existência da obra, seus locais de circulação e o valor daquilo que
será sentido e analisado – pense-se então em uma obra como Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino, e o que está em jogo
no ato de dar a câmera para o operário Deutrudes e constatar a falsidade desta
resolução (aí o pacto de classes é negado, ufa).
Ladrões
de Cinema tenta ser, portanto, a prova de seu próprio argumento: quando
se trata de arte no que se chama de mundo subdesenvolvido, não há lado de fora.
As condições de produção estão o tempo todo em cena testemunhando e efetuando o
gosto e a possibilidade, e isto justifica a existência de uma obra que discute
e inverte suas causas e consequências: é tudo a mesma coisa. Qualquer ilusão de
autonomia da obra cai por terra imediatamente, pois não há cinismo possível: o
real é este plano sempre a cortar, como um teor, a representação.
2
É
extremamente sintomático que os filmes de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane tenham
sido os mais afetados pela restrição de circulação e difusão dada por um cinema
sufocado por gostos alheios e demandas exteriores a ele. Isso resulta, ao cabo,
em filmes nunca exibidos publicamente, obras sem restauração ou até mesmo completamente
perdidas, como Carnaval na Lama (1970),
de Sganzerla – e convenhamos que isto é simplesmente inadmissível. Para dois
cineastas cuja carreira é permeada por filmes com interação com transeuntes,
pelos olhares de curiosos para a câmera e pela quebra constante da ilusão da
representação autônoma, este destino para suas obras é uma grande comprovação
do acerto crítico do discurso: de fato, era necessário misturar o lado de
dentro ao lado de fora para se ter um instante de verdade.
A
história da geração Boca-do-Lixo e Belair parece ser a história de um projeto
de radicalização da Estética da Fome do Cinema Novo: a tentativa de superar as
contradições de um modelo de cinema que tentava transformar o limite em
possibilidade – às vezes mais, às vezes menos como Oswald de Andrade –,
acreditando que nisso vivia verdadeiramente a possibilidade de se fazer um
filme nacional: internalizando as contradições materiais no plano da obra. Para
o “grupo” nunca homogêneo do cinema marginal, isso significava necessariamente
suspender todas as premissas de narratividade e representação do cinema
hegemônico, que se conservaram mesmo no Cinema Novo e garantiram seu sucesso
ante as classes médias – e note-se a maneira como Sganzerla diz certa vez em
entrevista sobre ser barrado na porta da
Embrafilme e então ter sido forçado
ao exílio, junto com Bressane, sob risco de prisão.
Que
se lembre, como exemplo mais evidente possível disso, como, já nos primeiros 7
minutos de Matou a Família e Foi ao
Cinema (Júlio Bressane, 1963), o jovem personagem já tinha matado a família
e já tinha ido ao cinema: a expectativa pela narrativa psicológica e pelo
suspense é desarmada imediatamente, e ainda resta uma hora de filme. Não se
pode atacar a realidade material sem atacar as resoluções formais que dela
surgiram e a ela foram incorporadas posteriormente. Veja que isto está um passo
além da quebra da barreira brechtiana tão comum, por exemplo, no cinema de
Carlos Diegues – como na sequência inicial de A Grande Cidade (1967): não só criar um diálogo que ultrapassa o
espaço diegético, mas mudar o tom de qualquer diálogo – os gritos que permeiam
as obras de Sganzerla, a trilha sonora irônica em Bressane –, de qualquer
posição entre quem dialoga – é como se os personagens nunca se escutassem –, da
relação destas pessoas com o espaço – é um cenário, mas é simultaneamente a rua
onde qualquer um pode pisar –, e muitos etc.
Há,
por exemplo, uma sequência histórica de Sganzerla em Sem Essa, Aranha (1970) em que todos os personagens descem uma rua
do morro do Vidigal em mais um capítulo da repetição atordoante de berros como estou com fome e estou com dor de barriga, sobre os impressionantes planos-sequência
do diretor. Mas há muito mais do que encenação aí. Os moradores, transeuntes,
crianças e cachorros do morro fazem mais do que compor um cenário para uma
representação: eles interferem nela e mesmo a delimitam. Os cachorros ameaçam
morder os atores, as crianças se colocam na frente da câmera enquanto riem dos
personagens, alguns observam curiosos mas correm da câmera quando ela se
aproxima. O fundo torna-se a frente, nesta dialética que aqui se tenta
defender. Não é como se o Vidigal fosse um cenário pitoresco para os anseios de
um grupo exterior a ela: o que Sganzerla deixa na tela é a crença de que esta cena se passa desta forma porque foi gravada neste
morro, e em outro qualquer outro lugar o resultado seria distinto. A base
material é, portanto, um nível de elaboração da forma e do conteúdo: eis como o
país se impõe, não é mais uma abstração nacionalista ou simbólica.
3
No
Brasil, os anos 1970 e 1980 marcam uma virada no nicho dos documentários:
filmes como Mato Eles (Sergio
Bianchi, 1982), Cabra Marcado para
Morrer (Eduardo Coutinho, 1984), Porto
de Santos (Aloysio Raulino, 1978) e Congo
(Arthur Omar, 1972) principiam um movimento amplo de contaminação do
documentário pela ficção, isto é, uma mudança no estatuto assumido para as
imagens do real em jogo nessas obras. O que se poderia dizer é que foi alterada
substancialmente a crença de que o documentário seria capaz de decifrar e
explicar certa essência daquilo ou de quem é retratado, como se notava, por
exemplo, nos importantes filmes da Caravana
Farkas nos anos 1960. Com esse movimento, nota-se uma considerável
alteração na figura do narrador – que praticamente desaparece –, em certa
economia da imagem do essencial e, sobretudo, do papel do diretor. O
documentário passa a ser compreendido como um discurso entre discursos, que não
esgotará nunca seu objeto e, inclusive, nem mesmo uma posição de puro objeto
torna-se possível para o que quer que seja – é cada vez mais difícil responder
a simples pergunta sobre o que é este
filme?
Alguns
anos depois, pode-se observar um movimento simétrico ao que foi acima descrito:
a contaminação da ficção pelo documentário. Em particular no cinema mineiro
contemporâneo, a ficção ganha a premissa de um trabalho de campo para pesquisa
de modos de vida de determinados bairros, grupos de indivíduos ou pessoas
específicas, o que implica estudos sobre movimentos históricos, criação de
textos conjuntamente a comunidades/grupos de indivíduos e formação de atores
nestes lugares. Filmes como A Vizinhança
do Tigre (Affonso Uchôa, 2015), Arábia
(Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), Temporada
(André Novais, 2018) No Coração do Mundo
(Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2019) e Baronesa (Juliana Antunes, 2017) apostam na utilização da realidade
como um instante de verdade da ficção, e na ficção como meio de lançar luz para
possibilidades latentes da realidade. Um esforço que resulta em obras de enorme
alcance crítico pela inserção que se consegue – e em que se baseia – no
cotidiano dos bairros e pessoas que aborda.
É
interessante pensar como estes dois movimentos de desconfiança simultânea sobre
o real e sobre a ficção – isto é, uma virada metadiscursiva – denotam uma
necessidade de buscar maneiras de subverter uma relação passiva entre objetos e
sujeitos, observadores e observados, bases materiais e resultados. Esta
necessidade parece partir da crença, como se tem aqui defendido, de que a
superação de posições sobre o real/no real só pode ser atingida a partir de um
discurso que altere a estrutura do que é dito, e não simplesmente o conteúdo do
dizer. Este que é, afinal, o abismo daquilo que convencionamos chamar de
representatividade, isto é, validação imediata de elementos que sejam
reconhecidos como socialmente significativos, mesmo que por muitas vezes estes
elementos estejam dispostos de maneira conservadora. Mas isso é outra história:
voltemos à nossa discussão.
Baronesa, filme magnífico de Juliana
Antunes, é uma prova do que se consegue a partir da radicalização da relação ficção-realidade.
Mais do que criar uma obra que pretenda abordar
questões essenciais sobre mulheres da periferia, a diretora pretende criar um
filme em que a vivência de determinadas pessoas em determinados bairros de uma
determinada periferia consiga alterar
o próprio processo de criação do filme, diminuindo no ato o risco do cinismo e
da observação exotizante. Isto significou, para a diretora, anos de pesquisa
até o interesse das personagens/atrizes do filme pela realização da obra. Mas esse
pressuposto, paralelamente a isso, não altera o conteúdo ficcional ou estético
do texto e da representação – e é interessante nos perguntarmos a quem damos o
direito da “arte” e da mimese e a quem temos designado apenas como
representantes da “realidade” ou “das ruas” –, mas cria um poderoso jogo de
identificação e distanciamento que consegue criar latências potentes tanto no
real quanto na ficção. Nos lembremos da sequência histórica em que as duas
personagens principais conversam na porta de suas casas e são surpreendidas por
tiros vindos de locais próximos, o que faz com que a câmera caia no chão, sendo
rapidamente apanhada de volta. Se a cena é inteiramente ficcional (e eu
particularmente não estou certo disso – quem souber me diga), há um enorme
acerto nesta quebra da passividade na representação da violência, que atinge o
próprio olhar do espectador, indo ao solo; mas se a cena é inteiramente
não-ficcional, o acerto está em mantê-la dentro da obra de ficção, como um
momento de verdade do filme e testemunho do enorme trabalho de pesquisa em jogo
em sua formação. Acertos de lado a lado, dúvidas sobre o estatuto das
imagens também de lado a lado.
Assim,
pensar neste tensionamento entre ficção e realidade é justamente conceber que
as condições materiais de uma obra não interferem ou condicionam a elaboração
de um objeto estético, mas atravessam esta construção de diferentes maneiras, a
serem exploradas como instantes de quebra na ficção ou no documentário (como em
Mato Eles, em que são alternados
depoimentos falsos e verdadeiros, sendo impossível distinguir, dado o absurdo
deles, qual é qual). É sintomático, assim, que o Brasil tenha dado tanto campo
a estes experimentos, e isto parece depor sobre a complexidade sociológica, e
consequentemente estética, em que se constituem os planos da experiência
sensível por aqui.
1 + 2 + 3 (Por
um realismo especulativo)
O
jornalista do programa Roda Viva pergunta a Mano Brown como é seu processo
criativo. Mano Brown responde que o maior processo criativo é a necessidade, já
que é a música que dá de comer a ele e sua família. É isso: talvez nessa
resposta curta e grossa esteja tudo aquilo que se tentou dizer neste texto
enorme até aqui. Não há lado de fora. Mas, para além de identificar nisso um
atrelamento simples entre realidade e representação – algo que sempre é
designado ao popular –, como se as condições materiais fossem refletidas na obra,
mero reflexo do real – olha só o determinismo dos eugenistas entrando pela
porta dos fundos –, devemos pensar no termo processo
criativo colocado em jogo pela resposta. Para Brown, e também aqui, existe
um termo do real que se impõe como necessidade da forma, mas não pela
forma: as condições materiais atravessam o processo, mas ele permanece sendo
elaboração e criatividade, proposição e descoberta. O mundo material é um plano
indispensável disso, assim como diversos outros que o atravessam e se
atravessam.
A
representação é assim um gesto: ocorre como necessidade de um princípio de
movimento, mas não conserva estes termos iniciais em sua resposta: contém e
exclui, simultaneamente. Mas nada disso é novo para o cinema brasileiro, é
claro, e aqui se tentou provar este ponto a partir de obras de diversos vieses
e locais de enunciação. A mistura de gêneros, a quebra da passividade da
observação, a internalização do aleatório, a radicalização da tensão entre ficção
e não-ficção, a contaminação de registros e a criação de zonas de
indeterminação: todas estas práticas serviram como testemunho de um esforço em
não falsificar os termos em que uma obra se constrói e sobre os quais se
elabora, isto é, não simplificar a relação entre realidade e ficção, base e
representação, processo e obra. Quando aqui se diz que não há lado de fora,
isso não pode significar nem pensar o mundo como representação, nem a ficção
como expressão imediata de uma realidade: é pensar que qualquer divisão entre
mundo e obra é arbitrária, não natural ou óbvia. E que cada obra realizará esta
divisão à sua maneira.
O
jogo de alternativas absurdas de Mato Eles
Estes
instantes de verdade do cinema brasileiro, que nunca se furtou de mexer nestas
linhas e divisões e de deixar visíveis as cicatrizes deste processo, me parecem
ser uma das mais significativas linhas de força desta trajetória. Nem negar o
real – buscando o isolamento da autonomia fictícia tão sonhada pelos amantes do
entretenimento –, nem negar a representação – buscando sociologizar tudo aquilo
que é produzido como arte, colocá-lo numa causação óbvia entre sociedade e
obra. O cinema brasileiro traz consigo a marca de um realismo especulativo como interminável processo de busca de formas
de justificar sua própria existência na realidade em que se manifesta. Isto
significa, assim, assumir que existe um real que escapa à imagem como
totalidade, mas que ali permanece como instante de verdade e eixo de composição
do processo.
Em
outras palavras, o cinema brasileiro tem sido muito honesto consigo mesmo. E
talvez seja justamente esta honestidade com as possibilidades do real e da
representação que tenha afastado por tanto tempo os beatos do entretenimento, os
conservadores da representação autônoma, os imbecis da busca pelo “popular” e
os otários do cultura-não-oferece-nada-à-sociedade: essa dialética mórbida que
tenta transformar a maior linha de força em defeito, rebaixando a partir da
distinção. Olhar para os termos do nosso realismo especulativo, contudo, seria
olhar para as frestas também desta realidade podre que se fabrica e que se
tenta impor como incontornável. Foi esta também a humilde tentativa deste texto,
enfim.
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