E o tênis molhado por dentro soa como protesto
Me impede num dia de sorte eu não descobrir
O nome daquilo que eu quero
(Summer Nights)
Esta encruzilhada parece ser, em verdade e ao cabo, inseparável de todo o percurso formativo da criação artística nacional, justamente porque seus termos partem de uma condição social concreta, que pode ser resumida, por um lado, no mote mais que batido e canalha do para quê poetas em tempos de fome, e, por outro, no que seria representatividade pura, algo que dá valor a uma produção artística basicamente pelo fato de ela se dar a ver. De lado a lado, o que se tem é, assim, a imposição direta de um contexto de falta social sobre o de criação artística, um condicionamento que parece sempre fincar nossas obras de arte no solo triste da pobreza e da ausência, limitando tanto a criação quanto a crítica. É interessante pensar, assim, justamente como a crítica de música contemporânea por essas bandas (e entenda-se pós-anos 1980) tem, salvo momentos luminosos como os textos de Walter Garcia, caído nesta falsa dicotomia entre celebração carnavalesca (e a crítica de rock nacional dá aula disso) e lamentação depressiva (onde finca mais o pé a crítica de rap, apesar de também cair por vezes no outro lado). É como se o que menos importasse fosse a forma ou o texto, fosse a performance ou a execução, mas sempre - sempre - um diálogo natimorto com uma realidade mistificada e idealizada, cuja função é unicamente podar e limitar.
Nisto vive, portanto, o grande interesse na obra de um artista como niLL. Na discografia do rapper de Jundiaí, o debate sobre a persistência e os eixos de uma estética da fome ganha ares complexos e engraçadamente literais, vide sua obsessão com o tema da comida em suas letras, e sua Sound Food Gang, cujo emblema é um pedaço de pizza*. A presença da comida - este elemento fundamental, primário em qualquer debate político de qualquer nível - parece ser um indicador, um sintoma do esforço que niLL emprega em suas composições: não esconder o contexto da falta, nem celebrá-lo cegamente: situá-lo, portanto, como dado de realidade.
Que se observem versos como trazemos bolacha na mochila (160293), hoje é o youtube que vai pagar o almoço (Valete de Copas), em plena sexta-feira/ Quase meia-noite, e eu em casa terminando um beat (Minha Mulher Acha que Eu Sou o Brad Pitt), e quando cantarem meu nome em suas músicas/ O que que eu faço? (Stay High), Mas falar de comida no rap não pode/ Quem inventou isso?/ Nego, eu tô com fome (Loopers), E a vida me olha torto, pede truco/ Aí eu vi que nem dá pra comprar tênis do Turco (Summer Nights), Mandaram umas camisa pra nóis usar/ Bem hoje que nossa casa vai alagar, por que será? (Capital Steez). O que se nota nestes trechos, no meio de uma constelação de outros possíveis, é um tipo particular e muito raro de subjetivação no rap brasileiro: em vez de uma retórica triunfalista - em que se celebra a vitória sobre os obstáculos e a posição onde se está hoje -, tem-se uma outra, de cunho muito diverso, em que se observam as brechas, os apesares em qualquer tipo de triunfo que se pretenda usufruir. Isto não significa uma condenação, é claro, ao discurso do triunfo, que move todos os dias muita gente a correr atrás de seu próprio sonho; também não significa assumir a necessidade de se portar uma retórica da falta, o que nos levaria exatamente ao erro que acusamos no começo deste texto. Significa, enfim, observar como se constrói uma carreira singular a partir de uma poética singular, e é neste ponto em que estamos agora.
niLL apresenta músicas gravadas independentemente sem que isso signifique uma baixa de qualidade: estão dados termos de uma busca particular de incorporar influências como a de MF DOOM e do Vaporwave. Mesmo assim, suas letras e sua produção - com a adição de áudios de whatsapp, de conversas de fundo, mesmo de quebras de continuidade - remetem à falta, à quebra e à adversidade, ademais de colocarem em cena um contato direto com a vida do indivíduo Davi Rezaque de Andrade, em seu dilema de restaurar a ligação de energia de sua casa, atingida por um caminhão, por exemplo. niLL, portanto, a partir de Regina, parte de um esforço de recolocar em cena a verdade do contexto de produção de sua obra, os lugares por onde passou, as circunstâncias que viveu: em suma, a fome que sentiu. Torna-se interessante e complexo este esquema em que falta e ganho, vitória e derrota, possibilidade e impossibilidade se iluminam e completam de lado-a-lado: é como se fizesse parte da obra não só o produto entregue, mas também seu cenário; e é como se o cenário fosse não só o palco, mas o teatro, o bairro em que está o teatro e o caminho que se faz para se chegar ao teatro.
Assim, nos termos de nosso esquema inicial, pode-se dizer que o ganho técnico não exclui a falta, mas possibilita melhor observá-la, colocá-la melhor em cena. 160293, por exemplo, cumpre o papel de ser não só uma canção, mas uma canção da canção: a falta é tematizada (trazemos bolacha na mochila) ao mesmo tempo que é incorporada à música, onde se ouve niLL dizer que quer desenrolar esse refrão, e um segundo indivíduo, que identifico como Adalberto, rir do dito. A situação de enunciação é, em 160293, jogada para dentro da música, diretamente transposta, re-situando uma produção que apenas tematizaria a falta (e que apenas tematizando, correria o risco de mistificá-la). Neste esforço de colocar suas canções dentro de uma cena enunciativa particular - e é interessante pensar a quantidade de informações sobre a vida de niLL que se pode pinçar unicamente ouvindo suas faixas - tem-se a construção de uma poética muito particular, em que os ganhos se situam em um contexto específico e relativo, e as perdas são parte do próprio processo de produção dos ganhos**.
Os exemplos são incessantes. Em Atari Level 2, uma canção sobre a fragilidade dos laços amorosos - assim como Jovens Telas Trincadas - o que está em jogo não é apenas o sentido das relação humanas, mas o próprio limite físico em que a comunicação é possível, internalizado na canção pela abrupta quebra de ritmo e pela mimetização de uma falha na placa de vídeo, que remete diretamente ao contexto tanto daqueles que estão trancados em quartos escuros fazendo clássicos quanto dos que os escutam nas mais diversas condições. Já em Tarsila, os versos de niLL se debruçam sobre os termos de sua própria produção independente, dos dilemas que cercam a música e que, nesta faixa, são trazidos diretamente para dentro dela. Alluka e Aqualtune valem-se também da mudança brusca de ritmo e da quebra, respectivamente, que levam a um deslocamento da experiência de audição. Mas um dos momentos mais interessantes deste processo pode ser observado nas inserções de Adalberto ao longo da mixtape Sound Food Station, uma síntese dos projetos capitaneados por niLL na Sound Food Gang, nas quais o produtor aparece como uma espécie de comentarista do disco, situando o contexto em que o rap tem ganhado locais sociais, colocando conselhos para os que estão ouvindo o álbum, e mesmo arrematando o disco passando o telefone de contato para shows. O contexto de produção e circulação da obra, novamente, é trazido com toda a força para dentro do disco, cujo arremate escolhido é a lembrança a cada audição de que não existe obra de arte sem as condições materiais que a sustentem, sem os shows que ajudem também a pagar o almoço. Os comentários de Adalberto cumprem, assim, a função de uma espécie de moldura da obra, parte indissociável do todo das canções do disco.
É neste sentido que se pode falar da estética da fome de niLL como uma maneira de se pensar ao mesmo tempo novas identidades possíveis pela música, limites e possibilidades materiais da criação de música no Brasil, o contexto de produção de rap independente, exercícios de autoficcionalização, etc etc etc sem se afastar um palmo do que é o próprio conteúdo e subtexto das canções. O que se tem a partir de Regina, passando pela mixtape Sound Food Station e por Good Smell parte 1, portanto, é um exercício dialético em que texto e contexto se retroalimentam em sentido, se intensificam e complexificam, propiciam uma leitura privilegiada sobre a própria arte contemporânea no Brasil. Este texto é, enfim, mero apontamento sobre todas as pontes que se podem erguer a partir desta obra. Que se possa, tão logo, observar as leituras que sairão daí.
* Assista isso aqui, por favor: https://www.youtube.com/watch?v=cmlFpWnpnso
**Drummond fez isso e não foi pouco, hein.
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