Notas sobre a lentidão (2) - Em teus passos, estático, segui

Este texto é dedicado a Bruno Ganz,
figura primeira da lentidão em minhas lembranças.

Começo o texto me esforçando para dormir no banco de trás de um carro. Sei que isso é semanticamente absurdo - se esforçar para dormir - e, no entanto, sei também que muitas vezes a vida não deixa escolha senão buscar soluções absurdas. O diálogo vigente me deprime. Quero fugir desesperadamente dele. O ar do carro, de vidros fechados, fica denso com a quantidade de afirmações que são lançadas. Há muito não respondo nenhuma delas. Meu destino me parece ainda muito distante, tanto quanto o sono. Não há trilha sonora nesta cena. 



Segundo consta, assisti A Eternidade e um Dia (que o tradutor automático assinala como "uma eternidade e um dia") em 2013. Foi esse o ano em que mais vi filmes na vida. Ora, logo vês como me esforço para sempre fugir. Nesse ano, contudo, os motivos me parecem ser razoáveis: eu era um técnico em mecatrônica recém-formado, ingressante em engenharia orgulhoso, desenhista industrial contratado, e a isto se resumia toda a minha vida. Aqui não há força de expressão alguma. Em uma cena que me remete diretamente a um pesadelo, me lembro de almoçar diante do computador da fábrica para então abrir um livro e não compreender uma única palavra que ali estava transcrita. Como se fossem mera matéria visual: as palavras passavam e eu as perdia. E confesso que este foi um dos dias mais tristes de minha vida, mesmo sendo ela semeada de dias tristes.

Mas não se preocupe, caro leitor, este texto não é sobre mim ou minhas tristezas. Este texto é sobre como, a cada dia mais, a lentidão me parece ser uma das figuras mais fundamentais para qualquer noção de história (por que tenho insistido tanto nesta palavra?) que tentemos conceber. A dor, naquele instante em que Neruda não escrevia absolutamente nada, era a de sentir que eu vivia uma vida que não poderia ser a minha. Não. Em verdade, o oposto disso. A dor de sentir que eu vivia apenas a minha vida, e não a vida dos objetos e das palavras, onde de fato dançam, repousam, se propagam os outros.

As tentativas de sair deste labirinto foram inúmeras, sim. Me lembro de tentar ouvir música e adormecer sempre, de comprar livros e mais livros por achar que o problema era deles, e que eu não o carregava comigo. E me lembro, enfim, de ter assistido A Eternidade e um Dia, de Theo Angelopoulos, em algum feriado estendido deste 2013. (e peço perdão pela frase tão convicta, mas confirmo agora seu sentido tanto em mim quanto nela mesma) Talvez poucas coisas tenham alterado tanto o curso de meus rios quanto ver este filme. Aí surge outra vez o reino das formas, a maneira como qualquer obra de arte é em si uma parte ínfima do mundo, tendo também todo o mundo em si mesma. Pois naquela madrugada, diante da tela mínima, um nó se desata: e eu compreendo um tanto mais sobre o que se passava com minha vida.



Não importa aqui esboçar uma sinopse ou um roteiro. Porque não é isso que vem à minha cabeça quando penso neste filme, ou quando ele me assalta as vistas em um dia cansado em que perco e assumo que perco. Penso nos longos planos de Angelopoulos, planos de às vezes 8, 10 minutos, que se sucedem escamoteando aquilo que num filme é uma montagem. Penso em como esses planos são sempre abertos, com a câmera quase sempre imóvel, e penso em como parece que o esforço ali é o de mostrar sempre a relação inevitável do homem com seu lugar e com seu tempo próprios, algo que a proximidade e a violência de cortes (já diz o nome) afastariam. Penso sobretudo em como ali parece se delinear uma ética da imagem: um compromisso de que representar algo, ou alguém, é representar seu estar-no-mundo, sua viagem particular pelas formas que o dia dá e que os homens fabricam, e neste intervalo se evidenciarem enfim as máquinas que movem a política. Angelopoulos parece dizer que a chave de compreender a sociedade está em entender que o outro tem um ritmo, e que esse ritmo pode apenas ser contemplado, observado, jamais compreendido ou fixado. Talvez seja esse o maior frescor que conservam até hoje os poemas homéricos, não acidentalmente gregos.

Nisto tudo, que se mostrou em forma de assombro, veio, como uma manhã, para a lentidão, o meu sim.

Mas isto não é um romance de formação, eu sei. Não atribuiria a A Eternidade e um Dia o fato de eu ter me demitido, trocado de curso, etc etc - não há triunfo nisso. Tampouco acho que este episódio seja a solução para as horas inaceitáveis que vivemos em coletivos subterrâneos, privados do sentido de nossos próprios corpos, e nisso evidentemente me incluo. Não. Meu contato com a obra de Angelopoulos é muito mais sobre uma saída ética (logo, política) possível para nós, algo que passa necessariamente por compreender que tanto o outro quanto o Outro são impossíveis, e que nisso vive o mérito e o limite de qualquer experiência de vida. Mesmo que o esforço para nos privar de palavras prossiga em marcha, dia após dia, a ponto que consideremos que contemplar - fixar o olhar em algo, em alguém - possa ser um desperdício diante da urgência do mundo, sempre por um fio. A lentidão dos passos daqueles personagens, no tempo que eles levam para sair do enquadramento da câmera, é o próprio ritmo em que se move a história. Observados à distância, somos-são simultaneamente texto e contexto. Por isso a câmera de Angelopoulos é distante, e sutil: como se nos quisesse mostrar em quê consistem nossos atos de fato, qual é, ao cabo e a princípio, sua matéria. É ritmo, ritmo puramente. Inevitável, e próprio ritmo. Ali onde as palavras se assentam, e nelas enfim agimos.


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