A mulher não existe da mesma maneira que uma sociedade justa e igualitária não existe. E nenhum dos termos da comparação surge inscrito numa pedra. Este é o ponto. A beleza destes processos, destes norteamentos surge exatamente no momento em que eles se deixam vislumbrar, em que eles trazem consigo o assombro que liga o sonho à possibilidade. O seu impedimento, portanto, está sempre forrado de arroubos, de instantes em que algo da ficção do lugar-comum é desmentido pelo redesenho, e o conserto das ideias e das imagens ilumina-se naquilo que é pura convenção e despotismo. A pureza dos limites só pode ser fictícia, e isto, diante do injusto, ou do presente durativo de um corpo em transe, torna-se dolorosamente óbvio.
O Homem, contudo, de fato existe. O que se diz ser a realidade, no sentido mais corrente e mesquinho do termo, como oposição a sonho ou desejo, é justamente o que se poderia dizer inerentemente parte do Homem. É nesta realidade que estão os pés e as palavras do Homem, instituído e maiúsculo, letra da ordem e da polícia, daquilo que confina e que necessariamente exerce uma contraforça. Como se seu corpo e sua própria maneira de existir se baseassem na segurança do lugar do corpo do outro, como se fosse sempre necessário comprovar que o outro está onde deveria estar para, só então, dar qualquer passo em sua direção.
São dois lados de uma equação impossível, em que nunca se acharia todos os termos a serem descobertos. Nesta equação maior que a humanidade também estou eu, e estão também as minhas palavras. (Quem poderia, afinal, assegurar, Cecília, que este texto não sirva exatamente para me reafirmar um lugar privilegiado na ordem do mesmo, ainda que o texto trate em seu corpo de algo outro?)
*
O sr. Sabzian tem olhos doces e ermos. Confessa ao juiz que agiu unicamente por amor, e nenhum de nós, nem mesmo o sr. Kiarostami, conseguimos duvidar disso. O sr. Sabzian tem palavras doces e ermas.
Leopold Bloom parece não se importar sobre o sentido dos passos de Molly. Ela, no entanto, no fim da noite, se lembra de sua fixação por espartilhos, pelo público, por suas costas. Bloom e Dedalus são pai e filho, sem serem. O amor de Bloom ocupa um não-lugar duvidoso e difícil de situar. Daí decorre sua súbita eternidade.
A paulada que João recebeu foi causada por sua crença no mar. Crer no mar, em meio ao sertão, é como crer no diabo dentro de uma igreja mineira. João, no entanto, não se bastava em ver: dançava o mar, e mais: fazia com que o dançassem. Fracassaram os que tentavam localizar as beiras de seu corpo, ou suas arestas.
*
O sentido de algo distinto parece ser a menoridade. A redução do tudo ao algo. Há nisso uma necessidade não só de redefinir o Homem, mas de destituir o binário de sua posição de grau zero da diferença. Olhar então as maneiras como as pessoas se tornam sujeitos, sempre parciais, sempre perdendo algo dos esquemas genéricos. Sendo sempre impossíveis tanto a si próprios como à completude dos conceitos.
O esforço parece ser, então, o de se desconfiar. E de desconfiar das imagens que temos dos outros. O poder revelador que a representação tem - em sua própria constituição, na distancia entre o querer dizer, o dizer e o ter dito - faz parte disso, deste processo de autodistanciamento, no qual a polícia é ineficaz, porque não sabe a quem mandar, ou qual categoria eleger para definir. Evidentemente, não há solução alguma aqui, mas o arroubo de um apontamento, e a incredulidade absoluta de cada instante em que o outro assume seu corpo, perdendo-o. Ao Homem cabe também perder: tornar-se homem afinal.
(Sim, Cecília, esta é uma visão particular. A minha.)
O Homem, contudo, de fato existe. O que se diz ser a realidade, no sentido mais corrente e mesquinho do termo, como oposição a sonho ou desejo, é justamente o que se poderia dizer inerentemente parte do Homem. É nesta realidade que estão os pés e as palavras do Homem, instituído e maiúsculo, letra da ordem e da polícia, daquilo que confina e que necessariamente exerce uma contraforça. Como se seu corpo e sua própria maneira de existir se baseassem na segurança do lugar do corpo do outro, como se fosse sempre necessário comprovar que o outro está onde deveria estar para, só então, dar qualquer passo em sua direção.
São dois lados de uma equação impossível, em que nunca se acharia todos os termos a serem descobertos. Nesta equação maior que a humanidade também estou eu, e estão também as minhas palavras. (Quem poderia, afinal, assegurar, Cecília, que este texto não sirva exatamente para me reafirmar um lugar privilegiado na ordem do mesmo, ainda que o texto trate em seu corpo de algo outro?)
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O sr. Sabzian tem olhos doces e ermos. Confessa ao juiz que agiu unicamente por amor, e nenhum de nós, nem mesmo o sr. Kiarostami, conseguimos duvidar disso. O sr. Sabzian tem palavras doces e ermas.
Leopold Bloom parece não se importar sobre o sentido dos passos de Molly. Ela, no entanto, no fim da noite, se lembra de sua fixação por espartilhos, pelo público, por suas costas. Bloom e Dedalus são pai e filho, sem serem. O amor de Bloom ocupa um não-lugar duvidoso e difícil de situar. Daí decorre sua súbita eternidade.
A paulada que João recebeu foi causada por sua crença no mar. Crer no mar, em meio ao sertão, é como crer no diabo dentro de uma igreja mineira. João, no entanto, não se bastava em ver: dançava o mar, e mais: fazia com que o dançassem. Fracassaram os que tentavam localizar as beiras de seu corpo, ou suas arestas.
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O sentido de algo distinto parece ser a menoridade. A redução do tudo ao algo. Há nisso uma necessidade não só de redefinir o Homem, mas de destituir o binário de sua posição de grau zero da diferença. Olhar então as maneiras como as pessoas se tornam sujeitos, sempre parciais, sempre perdendo algo dos esquemas genéricos. Sendo sempre impossíveis tanto a si próprios como à completude dos conceitos.
O esforço parece ser, então, o de se desconfiar. E de desconfiar das imagens que temos dos outros. O poder revelador que a representação tem - em sua própria constituição, na distancia entre o querer dizer, o dizer e o ter dito - faz parte disso, deste processo de autodistanciamento, no qual a polícia é ineficaz, porque não sabe a quem mandar, ou qual categoria eleger para definir. Evidentemente, não há solução alguma aqui, mas o arroubo de um apontamento, e a incredulidade absoluta de cada instante em que o outro assume seu corpo, perdendo-o. Ao Homem cabe também perder: tornar-se homem afinal.
(Sim, Cecília, esta é uma visão particular. A minha.)
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