Uma foto de meu bisavô

(Ah, Frantz Fanon, só tantos anos depois...)

A primeira experiência de autoestranhamento que tive na vida ocorreu na fila da merenda de uma escola pública.

-Vítor, sua barba é ruiva.

Eu, que havia poucos meses tinha cruzado esta insuperável fronteira da masculinidade, justifiquei com a primeira coisa que me apareceu na cabeça.

-Todos os homens da minha família tem a barba assim.

Mentira. Os homens da minha família nunca tiveram barba. Mais mentira ainda: eu nem conheço os homens da minha família, nem consigo supor a cara dos homens que me passaram este sangue.

Desde esta fala, passei a especular e difundir inúmeras possibilidades sobre a origem de minha barba: sou descendente de celtas, de vikings, de portugueses de Trás-os-Montes, de sertanejos mesmo (esta a versão mais comum, talvez porque a mais provável e interessante). A verdade é que, de fato, eu nunca terei uma resposta definitiva sobre isso, salvo se alguém do National Geographic se interessar por este enigma (não se interessará).

O que houve a partir daí em minha vida foi uma perda incessante das fronteiras que eu havia até então demarcado para minha identidade. Como num império caquético, os bárbaros foram tomando de lado a lado minhas cidades, minhas ideias sobre quem eu era, meu direito a uma filiação natural a uma imagem, uma tradição, uma família. Até que fiquei reduzido a um núcleo indissolúvel, que meu corpo não permitia que ultrapassassem.

Eu não tinha vindo de lugar nenhum. Como uma memória, como um ato de violência, eu era irrastreável, impertencível, incercável. E isso havia sido em toda minha vida, a partir daquele momento ficou óbvio para mim. Se meus amigos de São Paulo à época me chamavam de Bahia, bastaria eu chegar na Bahia para que as pessoas espontaneamente me chamassem de paulista. Se eu defendesse com raiva alguma dessas identidades, uma única palavra com as cores de minha voz já me desmentiria.

Eu nunca fui nada, de fato. Desde o começo.

E a verdade é que, talvez, ninguém seja. Sei que este parece um salto dialético e tanto, mas, desde aquele momento, eu me tornei muito sensível a questões como essas. Quando vejo alguém segurando uma bandeira, carregando um patuá, trajando uma camisa de futebol, dizendo "eu sou _____", me parece que diante de mim está alguém se defendendo de meus olhos: se defendendo mesmo da forma como eu poderia livremente interpretá-lo, como a dizer: esqueça, eu sou dono da minha verdade, e ela está posta.

Neste movimento, me parece que - sobre-humanamente - queremos assumir como parte de nossos corpos - como próteses, perucas, sapatos - elementos que a nossa sociedade nos obrigou a construir ou negar para que conseguíssemos suportá-la todos os dias. Como se criássemos um mirante que nos permitisse avançar sobre o real, ter certezas sobre o infinito, nos impor como queremos ser vistos (o que significa impor o mundo como queremos vê-lo).

Será eficaz enfrentar a brutalidade diária do mundo sempre a partir de nós mesmos? Será que as camadas e camadas e camadas de história que amarraram em nosso corpo, em signos, preconceitos e formas, devem ser assumidos sempre num primeiro passo?

Eu não tenho uma resposta definitiva, e nem conseguiria algo neste sentido: seria isso algo justamente contrário ao que venho aqui dizendo.

O que sei é que este, abaixo, é meu bisavô materno. E que eu poderia passar o resto da vida tentando encontrar suas feições sob a casca de meu rosto.


(Sim, ele também não tinha barba, de fato.)

Comentários