Leonardo Bertozzi, Arnaldo Ribeiro, Georges Didi-Huberman e Walter Benjamin sentam-se numa mesa dentro de minha cabeça. O assunto, obviamente, é a instauração do árbitro de vídeo no futebol brasileiro. Arnaldo Ribeiro é crítico, Bertozzi defende ferrenhamente, Didi-Huberman coça a testa, Benjamin não crê sequer que a discussão seja possível. A questão é que há muito o que se debater, e os presentes sequer tocam na sopa enquanto o assunto rola tortamente como uma bola mal-dominada.
Bertozzi é enfático: os críticos do VAR soarão no futuro como os críticos do cinto de segurança. Alguém lembra ao jornalista sobre o ocorrido com Chico Science, e sobre as diferenças nada desconsideráveis no símile. Arnaldo Ribeiro toma a palavra e diz que o erro faz parte do jogo como o gol ou o escanteio, e é interpelado por Benjamin, que diz que a corrupção e o falseamento fazem parte das democracias burguesas. Arnaldo parece não entender onde o alemão quer chegar com isso, e Didi-Huberman diz que todos estão a tangenciar o problema. O filósofo então se dirige a Bertozzi, dizendo que isto é uma questão de ética, antes de qualquer coisa: os dois travam ampla discussão, durante a qual os demais se calam. Só aqui, enfim, este texto começa.
Acreditem ou não na minha insuspeição, mas um ocorrido em um jogo do Esporte Clube Bahia (o meu time, seu desinformado) me chamou a atenção para a problemática suscitada pelo árbitro de vídeo. Durante a partida de ida contra o finado Atlético Paranaense, pelas quartas de final da Copa Sulamiranda, o tricolor baiano teve dois gols estranhamente anulados, que causaram a precoce eliminação da equipe. O segundo, um impedimento absurdamente milimétrico, não entrará aqui em questão; o primeiro, um lance de pé-alto durante o voleio de Clayton, me parece ser sintomático. Neste último, é absolutamente destacável um aspecto: o de que o árbitro de fato viu a jogada e validou o gol, tendo, no entanto, voltado atrás ao ver a imagem na microtela situada à margem do campo. O momento foi celebrado por comentaristas e considerado como elucidado por apoiadores, a despeito de sua complexidade inerente e do aspecto nada resolutivo que a imagem possuía para qualquer tipo de juízo. A questão que me restou deste episódio, e que me fez dar um jantar para quatro convidados dentro de minha cabeça, foi, portanto: pode a imagem de fato elucidar o real, sendo ela então mais real que o real? Diante do que narro, é óbvia a resposta.
Porque me questiono em um lance de pé-alto como o de Clayton, no qual não se pode traçar uma linha computadorizada que separe o impedido do legal - e que mesmo neste tipo de caso desconsidera a existência de um observador limitado -, se um pé-alto, diante dos olhos e diante da tela, é de fato o mesmo evento, o mesmo acontecimento. Também a resposta é protocolar. Observar uma imagem não pode em hipótese alguma significar acessar a realidade despótica dos acontecimentos, nem mesmo reafirmá-la. E é muito interessante que um ponto como este possa ser óbvio numa discussão sobre cinema, mas polêmico em uma mesa redonda futebolística, e acho que neste momento Didi-Huberman deixaria Bertozzi sem argumentos, revelando de certa maneira o anti-intelectualismo que reina no mundo da paixão como uma espécie de salvo-conduto para que se possa, em nome do amor, defender nada ou quase tudo.
Toda imagem é sua produção, sua difusão, os locais de sua difusão, seus pressupostos e intenções, sua forma. Um homem congelado em uma imagem não é o homem visto a olhos-nus. É outro homem. É a câmera, o ângulo, o ir e voltar que reforma completamente a força, a intencionalidade, o instante em que os atores - os jogadores - estão em ação. Que se perceba o que o termo corrente "lance interpretativo" escamoteia: a absoluta incapacidade de se racionalizar os termos do que é ou não uma infração, fazendo com o se inverta o sentido do vetor em direção à subjetividade irredutível de um árbitro, tão falível e parcial quanto à nossa, instrumento transformador da letra fria da lei em ação corretiva. Quando se coloca nesta equação a imagem como um elemento de resolução instantânea, tem-se então um duplo falseamento: a do árbitro enquanto sujeito de uma interpretação decisiva e não particular, e da imagem, portadora de uma verdade incontestável e dada no mundo.
A defesa não é, portanto, do erro como aspecto constitutivo do jogo - o que, previsto em suas regras, seria tão absurdo quanto potencialmente revolucionário (Benjamin sorri de canto de boca para Arnaldo Ribeiro). É, bem diferente disso, de um uso das imagens que possa partir da segurança de um estatuto responsável: que assuma que sua função é unicamente a de propor termos à interpretação, e não de ser a própria interpretação em si. É exatamente o oposto do que está em jogo em 98% dos comentários acerca da arbitragem, em que julga o absoluto do erro ou do acerto como se estes juízos pairassem no ar, e não em uma posição de observação particular, ou em uma situação dada, ou na letra permissiva de uma lei - e veja como o onipresente enunciado a regra é clara não faz o menor sentido. O árbitro de vídeo, portanto, depende de uma ética da imagem e, simetricamente, do real; uma ética na qual a primeira faça parte da segunda, e a segunda não exista jamais em absoluto.
Por isso, em um lance como o de Clayton, cabe pensar se se deveria de fato haver um árbitro de vídeo, e em qual medida este auxiliar é de fato um auxiliar. Um jogo de futebol em que os "lances interpretativos" sejam vistos e revistos por vídeo é um outro esporte bem distinto, que se baseia na premissa moderna da imagem emancipadora - o duplo de outra tópica da nossa modernidade recente, a do mundo como "construção ininterrupta de imagens". Nem a verdade absoluta, nem a impossibilidade da verdade. A responsabilidade da imagem, portanto. Porque redefinir a lógica do esporte não me parece ser a função nem primária, nem secundária do árbitro de vídeo, ou de qualquer auxiliar que surja para elucidar questões intrínsecas ao jogo. Evitar o grotesco, sim.
(Neste ponto, os quatro se calaram em minha cabeça; o zagueiro então ajeitou a bola na marca da cal).
Bertozzi é enfático: os críticos do VAR soarão no futuro como os críticos do cinto de segurança. Alguém lembra ao jornalista sobre o ocorrido com Chico Science, e sobre as diferenças nada desconsideráveis no símile. Arnaldo Ribeiro toma a palavra e diz que o erro faz parte do jogo como o gol ou o escanteio, e é interpelado por Benjamin, que diz que a corrupção e o falseamento fazem parte das democracias burguesas. Arnaldo parece não entender onde o alemão quer chegar com isso, e Didi-Huberman diz que todos estão a tangenciar o problema. O filósofo então se dirige a Bertozzi, dizendo que isto é uma questão de ética, antes de qualquer coisa: os dois travam ampla discussão, durante a qual os demais se calam. Só aqui, enfim, este texto começa.
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Acreditem ou não na minha insuspeição, mas um ocorrido em um jogo do Esporte Clube Bahia (o meu time, seu desinformado) me chamou a atenção para a problemática suscitada pelo árbitro de vídeo. Durante a partida de ida contra o finado Atlético Paranaense, pelas quartas de final da Copa Sulamiranda, o tricolor baiano teve dois gols estranhamente anulados, que causaram a precoce eliminação da equipe. O segundo, um impedimento absurdamente milimétrico, não entrará aqui em questão; o primeiro, um lance de pé-alto durante o voleio de Clayton, me parece ser sintomático. Neste último, é absolutamente destacável um aspecto: o de que o árbitro de fato viu a jogada e validou o gol, tendo, no entanto, voltado atrás ao ver a imagem na microtela situada à margem do campo. O momento foi celebrado por comentaristas e considerado como elucidado por apoiadores, a despeito de sua complexidade inerente e do aspecto nada resolutivo que a imagem possuía para qualquer tipo de juízo. A questão que me restou deste episódio, e que me fez dar um jantar para quatro convidados dentro de minha cabeça, foi, portanto: pode a imagem de fato elucidar o real, sendo ela então mais real que o real? Diante do que narro, é óbvia a resposta.
Porque me questiono em um lance de pé-alto como o de Clayton, no qual não se pode traçar uma linha computadorizada que separe o impedido do legal - e que mesmo neste tipo de caso desconsidera a existência de um observador limitado -, se um pé-alto, diante dos olhos e diante da tela, é de fato o mesmo evento, o mesmo acontecimento. Também a resposta é protocolar. Observar uma imagem não pode em hipótese alguma significar acessar a realidade despótica dos acontecimentos, nem mesmo reafirmá-la. E é muito interessante que um ponto como este possa ser óbvio numa discussão sobre cinema, mas polêmico em uma mesa redonda futebolística, e acho que neste momento Didi-Huberman deixaria Bertozzi sem argumentos, revelando de certa maneira o anti-intelectualismo que reina no mundo da paixão como uma espécie de salvo-conduto para que se possa, em nome do amor, defender nada ou quase tudo.
Toda imagem é sua produção, sua difusão, os locais de sua difusão, seus pressupostos e intenções, sua forma. Um homem congelado em uma imagem não é o homem visto a olhos-nus. É outro homem. É a câmera, o ângulo, o ir e voltar que reforma completamente a força, a intencionalidade, o instante em que os atores - os jogadores - estão em ação. Que se perceba o que o termo corrente "lance interpretativo" escamoteia: a absoluta incapacidade de se racionalizar os termos do que é ou não uma infração, fazendo com o se inverta o sentido do vetor em direção à subjetividade irredutível de um árbitro, tão falível e parcial quanto à nossa, instrumento transformador da letra fria da lei em ação corretiva. Quando se coloca nesta equação a imagem como um elemento de resolução instantânea, tem-se então um duplo falseamento: a do árbitro enquanto sujeito de uma interpretação decisiva e não particular, e da imagem, portadora de uma verdade incontestável e dada no mundo.
A defesa não é, portanto, do erro como aspecto constitutivo do jogo - o que, previsto em suas regras, seria tão absurdo quanto potencialmente revolucionário (Benjamin sorri de canto de boca para Arnaldo Ribeiro). É, bem diferente disso, de um uso das imagens que possa partir da segurança de um estatuto responsável: que assuma que sua função é unicamente a de propor termos à interpretação, e não de ser a própria interpretação em si. É exatamente o oposto do que está em jogo em 98% dos comentários acerca da arbitragem, em que julga o absoluto do erro ou do acerto como se estes juízos pairassem no ar, e não em uma posição de observação particular, ou em uma situação dada, ou na letra permissiva de uma lei - e veja como o onipresente enunciado a regra é clara não faz o menor sentido. O árbitro de vídeo, portanto, depende de uma ética da imagem e, simetricamente, do real; uma ética na qual a primeira faça parte da segunda, e a segunda não exista jamais em absoluto.
Por isso, em um lance como o de Clayton, cabe pensar se se deveria de fato haver um árbitro de vídeo, e em qual medida este auxiliar é de fato um auxiliar. Um jogo de futebol em que os "lances interpretativos" sejam vistos e revistos por vídeo é um outro esporte bem distinto, que se baseia na premissa moderna da imagem emancipadora - o duplo de outra tópica da nossa modernidade recente, a do mundo como "construção ininterrupta de imagens". Nem a verdade absoluta, nem a impossibilidade da verdade. A responsabilidade da imagem, portanto. Porque redefinir a lógica do esporte não me parece ser a função nem primária, nem secundária do árbitro de vídeo, ou de qualquer auxiliar que surja para elucidar questões intrínsecas ao jogo. Evitar o grotesco, sim.
(Neste ponto, os quatro se calaram em minha cabeça; o zagueiro então ajeitou a bola na marca da cal).
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