(O autor não é articulador político, e promete que logo voltará a falar sobre assuntos mais importantes)
A verdade é que, pela primeira vez em nossa curta história pós-imperial, estamos diante de (ou, na verdade, sob) um discurso hegemônico que não se propõe, em nenhuma medida, a incluir em si todos aqueles que na prática subjuga. Mesmo nos períodos mais saborosos de nossa ditadura, os momentos de "ame-o ou deixe-o" eram respaldados por um amplo discurso de integração, que culminou em acontecimentos discursivos como a Transamazônica e as paradas militares nas regiões Norte e Nordeste do país. A exclusão era feita, antes de tudo, por atos de violência institucional, sempre desmentidos pelas palavras, pelas narrativas oficiais que anunciavam o bem comum, o melhor caminho para o todo de um país. Neste contexto, contudo, a bandeira brasileira ainda significava algo para uma esquerda que, desde Prestes e passando por Goulart, era majoritariamente nacionalista. Falar sobre o Brasil significava para aquela direita, então, se apossar do discurso da esquerda para desbaratá-lo por dentro, criando para ela paradoxos como a absoluta dificuldade de se colocar contra uma seleção de futebol que, ao mesmo tempo, encarnava um ideal de união nacional tanto para os majores quanto para aqueles que viam o encantamento popular e estético produzido por um Pelé ou um Tostão (um horizonte de emancipação pela beleza vive nisso, por que não).
Algo muito distinto parece haver, contudo, no discurso de JB, e em seu contexto. Ouvir qualquer fala ou pronunciamento do presidente eleito em 2018, assim como de seus capangas de Armani, parece evidenciar um enorme esforço em deixar claro que não há nenhuma possibilidade de se acionar um discurso de tipo integrador. É verdade, a forma do discurso já deixa isso claro: insultos, ironias, risadas, dedos em riste povoam a maneira como se cria uma situação permanentemente confrontativa e belicosa com qualquer interlocutor que pareça ser, de alguma maneira, ameaçador. Mas é o próprio conteúdo do discurso oficial o que mostra como o governo que se seguirá é ostensivamente feito para poucos. JB, Olavo do Carvalho, Paul Guede partem de um princípio comum: nomear sempre os bois, assumindo, é claro, que eu e você constituímos também este rebanho. Instaura-se, a partir de suas falas, uma identidade demarcada que simboliza o indivíduo portador dos valores do presente governo: o famigerado e requentado cidadão de bem. A ele são contrapostas as identidades feminista, esquerdista, comunista, petista, gayzista, bandido, vagabundo (...) cujos portadores, a priori, são rivais ou inimigos do projeto de poder. Existe, assim, explicitamente uma demanda de enquadramento em uma única identidade oficial, a única identidade que ofereceria livre circulação e representação dentro do governo JB.* Este processo faz, então, com que qualquer indivíduo que se sinta enquadrado no discurso hegemônico constitua em si um foco de disseminação das ideias oficiais, e enxergue a partir de si mesmo a sociedade como constituída por elementos corretos e elementos desviantes, que, naturalmente, devem ser suprimidos.
Convenhamos, este processo é muito absurdo. Sobretudo porque parece se valer das falhas da democracia representativa para apontar um revólver contra ela mesma. Pois, ainda que em nenhuma democracia deste tipo todo o povo sinta-se (ou seja) representado, o governo eleito está ali não só para garantir institucionalmente o resguardo da totalidade dos indivíduos, mas também para ostensivamente dizer que o faz, justamente para que o processo democrático possa existir em iguais condições na eleição seguinte. No Brasil de JB, contudo, deixa-se claro o esforço de sufocar qualquer tipo de identidade destoante daquele instituída oficialmente, e nisso parece haver uma sugestão acerca da necessidade de se "superar" o estágio democrático do país. Em 2019, o mocinho tem cara e nome, o vilão tem cara e nome também. Está instaurado, portanto, o paradoxo-base de um governo que afirma a todo o momento querer barrar as diferenças de gênero e raça ao mesmo tempo que se fundamenta no próprio contraste de identidades para conseguir perdurar enquanto governo.
Mas o ponto que nos concerne neste processo se dá no fato de, justamente, diante de nossos olhos, conseguirmos ver como uma democracia representativa traz em seu núcleo um limite latente de realização, e que basta então alguém como JB criar uma retórica que nos faça pensar que "Brasil, um país de todos" era um poema camoniano, para nos darmos conta de como precisamos sair logo deste jogo. O discurso bolsonarista é autocentrado, autorreferente, fala de si para si, não pressupõe nenhum tipo de abertura à dissidência ou à discordância, é antidialético e, no frigir dos ovos, antidemocrático. É um discurso voltado aos pares e cuja intenção é criar uma cisão, sempre o primeiro ponto para impor um processo de supressão do outro: todo discurso e todo ato de fala é um fazer fazer, é uma maneira de criar ações a partir da reiteração de identidades e comportamentos. Se assumirmos que a base da democracia é o con-vívio, temos o conteúdo absolutista desta voz messiânica que visa explicitamente dividir. O que nos resta da questão da representação, portanto, é o fato de que existe um jogo de identidades que norteia o discurso de JB - sendo a identidade da direita sempre construída a partir do negativo da suposta identidade da esquerda -, algo que se inicia a partir do próprio fundamento da democracia representativa, marcada pela fixação de formas possíveis de ser a si mesmo.
Pensemos nos motes que tentamos entoar nos últimos anos. Sobretudo no "não passarão", no "diretas já", no "seja marginal seja herói" que tentamos ensaiar neste meio tempo. E em como desenterramos estes termos que nem sequer remetem a vitórias passadas, mas a derrotas históricas. Pensemos também no fato de termos votado com livros sob o braço, pensemos em todas as vezes que mandamos alguém ir estudar. Em como neste processo assumimos exatamente a imagem que a direita defende para nós, para então abrir caminho para um anti-intelectualismo que leva crianças a morrerem por não tomarem vacinas. Em que medida temos sido tudo aquilo que esperam e projetam que sejamos? Em que medida reiteramos a identidade que nos fixaram? Ou melhor, em que medida nós mesmos cooperamos para que fixassem uma identidade em nossos corpos?
É evidente que, na iminência de uma catástrofe totalitária, criticar o cenário da democracia representativa parece absurdo, mas, quando o faço, imagino que estejamos ainda em seu vigor e que, por isso, podemos ao menos resguardá-la. As última eleições, para ilustrar a pertinência desta questão, levavam a crer que o projeto petista seria impiedosamente varrido do mapa. No entanto, ao cabo, uma virada nas urnas pareceu não só possível quanto provável. A que ela se deveria? À mudança brusca de tática que fez a campanha de Haddad e sua militância ao valer-se de imagens bíblicas, de cores novas, de espaços de enunciação que andavam abandonados, de outros argumentos. O exemplo é mesquinho, eu sei, mas mostra um passo para uma percepção acertada: em todos os momentos históricos em que irrompeu algum tipo real de potência política, algo do circuito da representação saiu de controle. Das barricadas da Comuna, depois emuladas em 1968, à resistência ao Vietnã, ao pedido pelas Diretas e ao princípio dos protestos de 2013 no Brasil vemos como nada tem o poder de abalar um governo como a incapacidade de situar o local das demandas, os nomes e as origens daqueles que demandam. Essa perda de controle - sempre positiva, organizadora - mostra como, no fundo, as democracias representativas correspondem um jogo não só político, mas também policial: algo que força um movimento de repartição das pessoas no limite de seus corpos e de seus "lugares de fala".
No fundo, era sobre isso que Mano Brown falava no palanque da Cinelândia há alguns meses. A esquerda brasileira se aprisionou numa identidade que não foi ela própria quem construiu: portou-se como previsto, repetiu jargões, twittou hashtags, fez passeatas no horário combinado e no lugar de sempre. E a verdade é que a direita brasileira há muito já sacou isso, justamente passando a operar em cima dessas identidades para pautar todos os dias as nossas lutas a partir de uma frase polêmica, criando sempre cortinas de fumaça para suas ações. Creio que não devemos seguir neste jogo, nem continuar defendendo o pedaço mesquinho de terra em que nos aprisionaram. Precisamos criar novas pontes, novas formas de visibilidade e dizibilidade imprevistas que mostrem relações entre opostos, que mostrem afinidades entre distantes, que mostrem como somos ainda a parte dos sem parte. Nada é mais parecido que as condições materiais de um pobre de direita e um pobre de esquerda; há muita coisa em comum entre a violência contra os indígenas e contra os negros no Brasil; é possível encontrar muitas semelhanças estéticas entre Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais, e Guerra e Paz, de Portinari, sem negligenciar suas diferenças.
Este momento me parece ser sobre isso, enfim: evidenciar o circuito em que há sempre um eu que diz eu. Um circuito em que o eu se mostra uma ficção necessária, mas ainda uma ficção. Assumindo novas formas de ação sempre que seja necessário, dizendo a si próprio diferentemente diante de outra demanda e de outro contexto. E não se prendendo às pautas impostas por outros, às polêmicas dos dias, à autoironia e ao meme que, ainda que se distanciem, operam a partir do que é dito pelo outro. Nisto faremos política, e a faremos a partir de nossos próprios termos. Nisso também mostraremos o vazio dos discursos que tentam nos cercar a todo custo, e que, na melhor das hipóteses, conseguem agarrar as pegadas que deixamos por onde passamos. Distantes tanto dos discursos de nação quanto dos discursos sobre nossa identidade, talvez possamos, enfim, ser a nós mesmos. E sobreviver. Assim eu tendo a acreditar.
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