(Este texto me surge diante da recente entrevista de Marcelino Freire a Carta Capital* e da apresentação de O Sol na Cabeça no site da Companhia das Letras**)
Ainda não nos livramos da antiquíssima demanda pelo verdadeiro. Tendemos a procurar o sentido real da experiência histórica em uma ou outra voz, em um ou outro lugar. Quando chegamos a 2019 requisitando o lugar de fala como operador crítico para uma obra, estamos assumindo a existência do verdadeiro. Quando traçamos uma fronteira estrita entre o metafórico e o literal, ocorre o mesmo. Nossa ânsia por encontrar esta encruzilhada em que o sujeito ou a realidade se revelem sem mediações e amarras é absolutamente similar, por exemplo, àquela que duzentos anos antes levou a algo que se convencionou chamar de estética naturalista: é uma demanda política por explicitar a verdade de nosso tempo, onde estaria seu verdadeiro limite, sua forma mais sincera, acusando então as versões falsificadas da realidade. Nossa diferença, de fato, é que somos melhor intencionados que os eugenistas. O que no entanto não nos exime da culpa pelos efeitos colaterais que produzimos com nossos juízos, é verdade.
Em princípio, o que está em jogo hoje é a tentativa de dizer algo como "cada voz tem seu lugar de verdade assegurado" ou "é hora de reverter os massacres exercidos pelo cânone". Ditos puramente, estes enunciados soam com urgência e valia inquestionáveis, já que existe um processo de silenciamento de vozes e formas dissonantes sobre o qual se estrutura todo tipo de fixação de hegemonia cultural. Em resposta a isso, portanto, temos buscado nas experiências marginais de enunciação (ou o que assim temos considerado) o núcleo de uma verdade que vinha sendo negligenciada nos lugares de expressão hegemônicos, assegurando com isto a participação destas ideias no circuito da vida cotidiana e revelando tudo aquilo que haveria de impuro nos objetos socialmente reconhecidos como portadores de sentido. No entanto, ao assumirmos estas posições, constantemente temos replicado os comportamentos que nós mesmos condenamos naqueles que buscam a todo custo silenciar as vozes dos outros, e manter a sociedade exatamente da maneira como ela se encontra hoje, o que passa principalmente por exotizar a vivência e a expressão daquele que assumimos como sendo absolutamente outro.
Uma primeira consequência de uma posição que transforma em absoluta a posição do outro (isto é, que coloca o outro como um dado, como uma distância incapaz de ser percorrida) é aceitarmos que há lugares em que a representação é mediada e outras em que ela é imediata. Se dizemos que um poema de slam é a priori mais combativo que, por exemplo, o Ulysses de Joyce unicamente por representar uma verdade sem "firulas" ou "artifícios", no fundo dizemos que os frequentadores de um slam não fazem literatura, que sua expressão não é a de uma forma inscrita na história das formas, mas sim a de um indivíduo que simplesmente está condenado a enunciar a si mesmo para sempre. Agimos, assim, como polícia. Porque esta distinção entre sentido real e fictício se baseia justamente no confinamento de alguns tipos de expressão ao local e aos indivíduos que ali se expressam, como se jamais pudessem ultrapassar a fronteira de seus corpos, como se não tivessem este direito. O que falta nesta leitura é a identificação de que um corpo em cena - em qualquer cena - já é representação de um corpo, nunca o corpo em si.
Com isso, ainda não demos um único passo para a superação de distinção entre alta e baixa cultura. O esforço histórico de diferenciação entre o que seria apropriado ou inapropriado a determinado grupo social continua em vigor a partir do momento em que dizemos que a verdade da periferia ou da sociedade está na representação do funk, do rap, do slam ou do que quer que seja, o que, pelo negativo, afirma que a verdade da cultura hegemônica está na Monalisa, nos Beatles ou no Don Quijote. Reafirmamos, então, uma dicotomia insuperável, colocamos "cada um em seu lugar" e, no máximo, invertemos o valor dos polos desta oposição histórica entre objetos culturais, dizendo que somente os da margem são verdadeiros portadores de valor, e que sujeitos que sejam oriundos destes locais de enunciação deveriam se identificar com objetos culturais que coincidam com o local social de seus corpos, porque os demais são falsos e exteriores. Assim, negamos a narrativa escrita a milhões de mãos sobre o ser específico da arte no mundo: sua absoluta capacidade de deslocamento do eu com relação ao outro e a si mesmo, o que ao longo dos tempos se mostra nas inumeráveis histórias de indivíduos que, em contato ao acaso com obras de arte, descobriram-se estranhos no que imaginavam ser seu próprio mundo. Tiveram, então, que reinventá-lo a partir deste contato.
A questão não passa, evidentemente, por negar a dimensão literária ou artística de enunciados em que o sujeito invoque sua vivência. É, pelo contrário, historicizar estes enunciados, assumi-los como uma forma dentre outras milhões prováveis, submetê-los a uma crítica que não diga que eles são válidos simplesmente por serem portadores de algum tipo de verdade social. Quando privamos os poemas de um slam de uma crítica de sua forma - de suas rimas, de sua gestualidade, de suas metáforas - dizemos, tacitamente, "isto não é arte". A primeira crítica de rap feita no Brasil a partir da academia caiu justamente nisso quando sucessivas vezes afirmou o conteúdo de verdade, a não-metaforização, a literalidade das letras de um Mano Brown: e, no entanto, ali estão algumas das melhores rimas, aliterações e imagens da história da Língua Portuguesa. Reforçar o conteúdo formal de uma obra de expressividade política e social é tirar os limites que atrelam necessariamente todos os termos de um discurso a um grupo social específico, e aí novamente nos livramos da triste roda do determinismo em que, na melhor das intenções, temos dançado.
Dizer que um indivíduo é o portador absoluto de sua verdade é mistificá-lo, portanto: é resumi-lo àquilo que identificamos como sendo seu local social. E quando invocamos, assim, a demanda por "realismo", que noutras palavras significa literalidade, em oposição a experimentalismo ou formalismo, demarcamos um local social para esses procedimentos, dizendo que eles não pertencem ou deveriam pertencer a tal grupo social. Novamente, emulamos a polícia que diz "não ultrapasse a linha", "deixe eu ver seus documentos" ou "não há nada para ver por aqui". E no entanto posso me lembrar perfeitamente de como Galáxias, de Haroldo de Campos, e Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, produziram em salas do Capão Redondo e de Guaianazes um efeito que eu mesmo, enquanto professor naquele momento, não consegui prever, não só em termos de interpretação, mas de evocação de vivências e de produção artística espontânea por parte dos alunos. O que aprendi naqueles dias foi que em um advérbio bem colocado por um poeta pode haver um ato de resistência tão grande quanto em uma rima do RZO. A nossa questão, nesta busca por uma literatura que crie de fato resistência, é democratizar o acesso a elementos de cultura a ponto de um jovem poder escolher livremente sua filiação à poética de Sérgio Vaz ou de Konstantinos Kavafis, sem negligenciar com isso nem o contexto específico destes objetos, nem sua própria visão sobre o mundo ou sobre si mesmo: resistindo às determinações nas quais tentam enquadrar a sua verdade.
Este texto curto é o indicativo de uma demanda por historicização das formas e dos indivíduos. É a defesa de uma democracia que não signifique a fixação dos nomes às coisas, das pessoas aos lugares, dos lugares às formas, dos corpos aos discursos: são inúmeras trincheiras. É também a negação deste shopping center do liberalismo em que todo discurso é válido e tem significado assegurado, pronto para ser arrematado. A literatura sempre moveu estes engenhos, mostrando a absoluta fragilidade destas máquinas de encarceramento. Não seremos nós, portanto, que dela vivemos e que dela dependemos aqueles a tentar reiterá-las.
* Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=S07We755nUA&fbclid=IwAR2ZH9DThaS6w9tmUYU1ehiw3iKOzVSLs1mwUzrJZUHSTiFT4rjoMlK_iiU
** Em https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14481
Ainda não nos livramos da antiquíssima demanda pelo verdadeiro. Tendemos a procurar o sentido real da experiência histórica em uma ou outra voz, em um ou outro lugar. Quando chegamos a 2019 requisitando o lugar de fala como operador crítico para uma obra, estamos assumindo a existência do verdadeiro. Quando traçamos uma fronteira estrita entre o metafórico e o literal, ocorre o mesmo. Nossa ânsia por encontrar esta encruzilhada em que o sujeito ou a realidade se revelem sem mediações e amarras é absolutamente similar, por exemplo, àquela que duzentos anos antes levou a algo que se convencionou chamar de estética naturalista: é uma demanda política por explicitar a verdade de nosso tempo, onde estaria seu verdadeiro limite, sua forma mais sincera, acusando então as versões falsificadas da realidade. Nossa diferença, de fato, é que somos melhor intencionados que os eugenistas. O que no entanto não nos exime da culpa pelos efeitos colaterais que produzimos com nossos juízos, é verdade.
Em princípio, o que está em jogo hoje é a tentativa de dizer algo como "cada voz tem seu lugar de verdade assegurado" ou "é hora de reverter os massacres exercidos pelo cânone". Ditos puramente, estes enunciados soam com urgência e valia inquestionáveis, já que existe um processo de silenciamento de vozes e formas dissonantes sobre o qual se estrutura todo tipo de fixação de hegemonia cultural. Em resposta a isso, portanto, temos buscado nas experiências marginais de enunciação (ou o que assim temos considerado) o núcleo de uma verdade que vinha sendo negligenciada nos lugares de expressão hegemônicos, assegurando com isto a participação destas ideias no circuito da vida cotidiana e revelando tudo aquilo que haveria de impuro nos objetos socialmente reconhecidos como portadores de sentido. No entanto, ao assumirmos estas posições, constantemente temos replicado os comportamentos que nós mesmos condenamos naqueles que buscam a todo custo silenciar as vozes dos outros, e manter a sociedade exatamente da maneira como ela se encontra hoje, o que passa principalmente por exotizar a vivência e a expressão daquele que assumimos como sendo absolutamente outro.
Uma primeira consequência de uma posição que transforma em absoluta a posição do outro (isto é, que coloca o outro como um dado, como uma distância incapaz de ser percorrida) é aceitarmos que há lugares em que a representação é mediada e outras em que ela é imediata. Se dizemos que um poema de slam é a priori mais combativo que, por exemplo, o Ulysses de Joyce unicamente por representar uma verdade sem "firulas" ou "artifícios", no fundo dizemos que os frequentadores de um slam não fazem literatura, que sua expressão não é a de uma forma inscrita na história das formas, mas sim a de um indivíduo que simplesmente está condenado a enunciar a si mesmo para sempre. Agimos, assim, como polícia. Porque esta distinção entre sentido real e fictício se baseia justamente no confinamento de alguns tipos de expressão ao local e aos indivíduos que ali se expressam, como se jamais pudessem ultrapassar a fronteira de seus corpos, como se não tivessem este direito. O que falta nesta leitura é a identificação de que um corpo em cena - em qualquer cena - já é representação de um corpo, nunca o corpo em si.
Com isso, ainda não demos um único passo para a superação de distinção entre alta e baixa cultura. O esforço histórico de diferenciação entre o que seria apropriado ou inapropriado a determinado grupo social continua em vigor a partir do momento em que dizemos que a verdade da periferia ou da sociedade está na representação do funk, do rap, do slam ou do que quer que seja, o que, pelo negativo, afirma que a verdade da cultura hegemônica está na Monalisa, nos Beatles ou no Don Quijote. Reafirmamos, então, uma dicotomia insuperável, colocamos "cada um em seu lugar" e, no máximo, invertemos o valor dos polos desta oposição histórica entre objetos culturais, dizendo que somente os da margem são verdadeiros portadores de valor, e que sujeitos que sejam oriundos destes locais de enunciação deveriam se identificar com objetos culturais que coincidam com o local social de seus corpos, porque os demais são falsos e exteriores. Assim, negamos a narrativa escrita a milhões de mãos sobre o ser específico da arte no mundo: sua absoluta capacidade de deslocamento do eu com relação ao outro e a si mesmo, o que ao longo dos tempos se mostra nas inumeráveis histórias de indivíduos que, em contato ao acaso com obras de arte, descobriram-se estranhos no que imaginavam ser seu próprio mundo. Tiveram, então, que reinventá-lo a partir deste contato.
A questão não passa, evidentemente, por negar a dimensão literária ou artística de enunciados em que o sujeito invoque sua vivência. É, pelo contrário, historicizar estes enunciados, assumi-los como uma forma dentre outras milhões prováveis, submetê-los a uma crítica que não diga que eles são válidos simplesmente por serem portadores de algum tipo de verdade social. Quando privamos os poemas de um slam de uma crítica de sua forma - de suas rimas, de sua gestualidade, de suas metáforas - dizemos, tacitamente, "isto não é arte". A primeira crítica de rap feita no Brasil a partir da academia caiu justamente nisso quando sucessivas vezes afirmou o conteúdo de verdade, a não-metaforização, a literalidade das letras de um Mano Brown: e, no entanto, ali estão algumas das melhores rimas, aliterações e imagens da história da Língua Portuguesa. Reforçar o conteúdo formal de uma obra de expressividade política e social é tirar os limites que atrelam necessariamente todos os termos de um discurso a um grupo social específico, e aí novamente nos livramos da triste roda do determinismo em que, na melhor das intenções, temos dançado.
Dizer que um indivíduo é o portador absoluto de sua verdade é mistificá-lo, portanto: é resumi-lo àquilo que identificamos como sendo seu local social. E quando invocamos, assim, a demanda por "realismo", que noutras palavras significa literalidade, em oposição a experimentalismo ou formalismo, demarcamos um local social para esses procedimentos, dizendo que eles não pertencem ou deveriam pertencer a tal grupo social. Novamente, emulamos a polícia que diz "não ultrapasse a linha", "deixe eu ver seus documentos" ou "não há nada para ver por aqui". E no entanto posso me lembrar perfeitamente de como Galáxias, de Haroldo de Campos, e Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, produziram em salas do Capão Redondo e de Guaianazes um efeito que eu mesmo, enquanto professor naquele momento, não consegui prever, não só em termos de interpretação, mas de evocação de vivências e de produção artística espontânea por parte dos alunos. O que aprendi naqueles dias foi que em um advérbio bem colocado por um poeta pode haver um ato de resistência tão grande quanto em uma rima do RZO. A nossa questão, nesta busca por uma literatura que crie de fato resistência, é democratizar o acesso a elementos de cultura a ponto de um jovem poder escolher livremente sua filiação à poética de Sérgio Vaz ou de Konstantinos Kavafis, sem negligenciar com isso nem o contexto específico destes objetos, nem sua própria visão sobre o mundo ou sobre si mesmo: resistindo às determinações nas quais tentam enquadrar a sua verdade.
Este texto curto é o indicativo de uma demanda por historicização das formas e dos indivíduos. É a defesa de uma democracia que não signifique a fixação dos nomes às coisas, das pessoas aos lugares, dos lugares às formas, dos corpos aos discursos: são inúmeras trincheiras. É também a negação deste shopping center do liberalismo em que todo discurso é válido e tem significado assegurado, pronto para ser arrematado. A literatura sempre moveu estes engenhos, mostrando a absoluta fragilidade destas máquinas de encarceramento. Não seremos nós, portanto, que dela vivemos e que dela dependemos aqueles a tentar reiterá-las.
* Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=S07We755nUA&fbclid=IwAR2ZH9DThaS6w9tmUYU1ehiw3iKOzVSLs1mwUzrJZUHSTiFT4rjoMlK_iiU
** Em https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14481
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