Notas sobre Futebol e Estética (3) - Meu time-do-coração

Vítor, a gente não quer mais ouvir isso. Foi então que desisti de levar meu CD dos Doces Bárbaros para a van que me deixava na escola aos meus 9 ou 10 anos. Não me feriu propriamente o pedido da ajudante da motorista porque, desde que havia ganhado de meu avô o disco, eu já havia obrigado meus amigos a apreciar - o ouvido não tem pálpebras - a voz de Bethânia, Caetano, Gal e Gil pelo menos duas vezes por semana, indefectivelmente ao longo de uns dois meses. Mas ora, não pense que estou aqui lidando com Pé Quente Cabeça Fria ou Eu te Amo, tampouco imagine que este que vos escreve era uma criança prodígio de bom gosto* e aqui faz uma defesa de si: meu CD dizia respeito não a canções brasileiras clássicas, mas, unicamente, a interpretações do hino do Esporte Clube Bahia feitas pelos artistas. De fato, nem todo clube pode se gabar de ter um apoio tão distinto em seus quadros, mas a única questão para mim naquele momento era mostrar aos demais meninos como aquele presente me era querido, e como meu time era importante ao ponto de ter ao seu lado cantores que sempre engrossavam o cabedal da Nova Brasil FM, a única rádio que meus pais ouvem/ouviam. Colocando neste termos sei que a questão parece ridícula, no entanto, sendo-o ou não, é este o primeiro momento que guardo em mim de uma explícita defesa de uma identidade, sendo meu time talvez a única trincheira que em mim ainda, vá lá, sustente suas posições firmes até hoje.

(Em São Bernardo. Essa foto é bem ilustrativa, de fato)

Se Judith Butler fosse brasileira - ou talvez europeia - teria certamente dedicado algumas páginas de sua incrível obra à questão da escolha (ou imposição) do time de futebol ao indivíduo. A citação não é gratuita. Pensando em um texto como Identificação Recusada, há uma série de nexos entre o que o a autora chama de melancolia de gênero e o que poderíamos chamar de melancolia de time-do-coração. Assim como naturalizamos nosso gênero como uma condição intrínseca a nossos corpos, ao ponto de a cena edípica freudiana se desenhar a partir de uma relação barrada já entre gêneros distintos, e assim como não há espaço na sociedade para se prantear a enorme perda que é a fixação de um gênero - a impossibilidade de ter certas condutas, de desejar certas pessoas, de assumir certos comportamentos -, criando um luto jamais elaborado e que retorna em forma de violência e de derrisão ao outro - vide nossos estádios de futebol -, nossa fixação de um time-do-coração nos cria uma dor semelhante e que jamais conhecemos verdadeiramente ao longo da vida. Por que torcemos para um time e não para outro? Ou melhor, por que amamos um time e não podemos amar a nenhum outro? Veja como esta perda imensa sequer é cogitada como perda, e como pode soar para muitos como um falseamento do que seria o verdadeiro futebol: a dedicação cega e apaixonada por uma instituição, a defesa muitas vezes violenta e arbitrária de suas condutas e da conduta de seus adeptos, sejam elas eticamente boas ou não: sabemos até excessivamente como muitas vezes o futebol cataliza comportamentos agressivos ou de ódio por aquele que, simplesmente, cometeu o crime de ser outro. Note que a semelhança entre gênero e futebol, de novo, não é nada arbitrária.

A questão inicial - literalmente inicial - é: por que torcemos para o time que torcemos? Confesso que sou descrente de que nascemos amando este time e não aquele, como não nascemos tendo esta ou aquela religião, esta ou aquela opção sexual, este ou aquele gênero. Nós apenas nos defendemos com uma narrativa gloriosa que dê um sentido ascendente a tudo. Um exercício de catábase ou de anagnose - uma descida a nossos infernos - resolveria facilmente esta questão: sim, algo nos leva a amar um time, seja por osmose, seja por negação, seja por admiração, seja por um único acontecimento incontornável. Amar um time de futebol nunca é apenas amar um time de futebol. É amar um momento, uma filiação, uma ideologia, uma sensação: é dilatar no tempo algo que seria irremediavelmente passado, que estaria fadado a perder-se ou evaporar diante da infinidade de acontecimentos de nossas vidas. O time-do-coração - assim como o gênero, a nacionalidade, a religião - simboliza uma possibilidade de estabilização do sentido de nossas experiências, um elemento que escolhemos como determinante de muitos outros, de comportamentos e de atos: algo que facilita nossa visão sobre o mundo, e que nos dá explicações sobre o que somos e como agimos. O problema é quando esta estabilização é assumida como um dado da realidade ou da natureza, como uma predisposição ou um a priori que justifica preconceitos tolos, refutações frouxas, desconhecimento forçado. O gênero e o time-do-coração são oriundos de uma determinada construção pessoal e histórica, e deveriam ser vistos desta maneira caso estivéssemos dispostos a - quem sabe um dia - tentar não odiar o outro.

Falo a partir de mim, sim, é claro. Ver as coisas desta maneira - que talvez seja surreal para muitos - é algo que, tenho certeza, resulta de meu retorno às catacumbas da minha identidade: sei que amo o Bahia como amei meu avô, e porque amei meu avô. Sei que a cada gol que comemoro é a meu avô que abraço, a ele que dou orgulho por ter continuado a mesma vereda. Sei que quando vou ao estádio, me defendo dos ideais de vida que São Paulo insiste em tentar me empurrar pela garganta, e me sinto finalmente um pouco em casa. Sei que me ligarão de um número que começa com 071 a cada jogo que ganharmos de maneira épica ou imprevista. E acredito que - como a torcida de meu time parece acreditar - o horizonte do futebol não é bélico ou religioso, mas intrinsecamente lúdico. Torcer para o Bahia é, para mim, assumir uma filiação ética, ideológica e, por que não, identitária, enfim. Foi esta consciência que me fez amar ainda mais meu time-de-coração, odiando muito menos aquilo que lhe é, casualmente, outro.

(No Pacaembu, a partir da torcida palmeirense. Nunca vivi maior solidão.)

Por isso acredito que uma relação com o time de futebol que baseie na consciência, na autorreflexão, na historicidade de nossa filiação é - assim como deveria ser com o gênero, com a religião, com a ideologia - uma maneira de ver-se sempre em contexto, de elaborar sempre esta melancolia que é não torcer para todos os times da mesma maneira como torcemos para nosso time-do-coração. Acredito que o corintiano que sabe o valor de Ademir da Guia, a sobrenaturalidade de Friedenreich ou a supremacia histórica de Pelé, da mesma maneira como distingue a classe de Sócrates e a fúria de Neto, tem uma relação muito mais saudável e produtiva com seu time e com o futebol do que aquele que tende a ver como inimigo tudo que se pareça com um outro. Não à toa futebol e homofobia andam de braços dados nos quatro cantos do mundo: é um mesmo processo de absoluta entrega aos desejos e demandas de uma instituição socialmente construída - que muitas vezes assumimos como absoluta, como portadora da Verdade e da Beleza - o que conduz à violência e à incompreensão. Daí nossa necessidade, eu acredito, de vermos como estamos sempre diante de limites, de lugares que não são essencialmente nossos, mas que assumimos - por algum motivo, em algum momento - como sendo.

Hoje entendo que aquele CD - que evidentemente ainda guardo aqui - marca minha primeira possibilidade de real pertencimento a uma família, a um grupo social. Filiação que sempre é ostensiva, que precisa do crivo dos outros, de sua aprovação ou negação para se sustentar como fato de realidade. O menino Vítor, ali, nos anos idos, precisava construir as bases de quem ele tentava ser; hoje, elas fincadas em memórias e experiências muito diversas, basta apenas frequentá-las. Sei que o Bahia não é o melhor time do mundo, como sei que são invejáveis os 4 gols de Índio em um único jogo e a crença cega dos pernambucanos em seu título de 87. Sei também que o homem que eu sou e pretendo ser é muito pautado pela imagem de meu avô, alguém acima de tudo doce, afetivo, emocionado, lúdico como o futebol que eu acredito. Sei, sobretudo, que, tudo que sou, eu poderia - fosse outro o mundo, fossem outros os dias - não ser. Calhou de ser assim, calhei de ganhar aquele disco, e de nascer naquele estado, e de amar a quem amei, e de escrever agora estas palavras. A única certeza é que este processo está longe de acabar. E que me perdoem os pobres colegas de van que tiveram que, naqueles meses, escutar a mesma música dos Doces Bárbaros.


(Em Barueri, como na canção dos Mulheres Negras)


*O que só ressaltaria tudo o que eu NÃO sou como adulto.

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