Porto Alegre, 2016
quando você viu na tv aquelas pessoas em fila na chuva à noite numa estrada na fronteira de um país que não as deseja
e quando você viu as bombas caírem sobre cidades distantes com aquelas casas e ruas tão sujas e tão diferentes
e quando você viu a polícia na praça do país estrangeiro partir pra cima de manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo
não pensou duas vezes nem trocou o canal e foi pegar comida na geladeira
não reparou o que vinha que era só uma questão de tempo não interpretou como sinal a notícia não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca e o barulho de bomba é ali fora e a polícia parte pra cima dos teus afetos munida de espadas, sobre cavalos
(Angélica Freitas)
A infernal alternativa entre dois enunciados canônicos sobre poesia ainda nos ressoa os dias. O primeiro, típico do discurso cínico, se dá nas formas de "para que servem poetas em tempos de fome?". O segundo, típico do discurso alarmista, vê-se na crença de que haja poemas capazes de promover "revolta", como a antologia da Companhia das Letras - onde se encontra Porto Alegre, 2016 - não deixa duvidar. De um lado e do outro, a crença de que o lastro de um poema possa/deva se basear no que existe (ou não) de participação social a partir dali, e aí voltamos aos velhos discursos sobre engajamento, desalienação e arte política, assim como sobre o compromisso de artistas com seu tempo histórico e suas demandas.
No fundo, há uma grande implicação entre estes discursos, opostos numa mesma equação: a não-compreensão de que uma representação seja meramente uma representação, mas faça parte de um sistema de esclarecimento ou afastamento com relação ao que seria um real problema social, uma situação diária incontornável. Com isso, voltamos brutalmente à cena histórica em que temos atuado, onde é comum que se culpem vídeo-games por massacres, quadros por degeneração moral, televisores por eleições de milicianos. A mediação dada pela representação, neste processo, é totalmente negligenciada. Isto significa, necessariamente, que não cessamos de repetir por um único instante como os indivíduos são ignorantes por se deixarem levar pelo fluxo das imagens, como através delas vivem em uma letargia que impede a ação social; por outro lado, como pode ou poderia haver sistemas de representação que, a partir do choque e da crítica, levariam as pessoas a povoar as ruas e praças, estivessem elas simplesmente dispostas a isso.
No fundo, o que está em jogo em todo este processo é a dúvida de que os indivíduos de fato raciocinem cotidianamente, e de qual seria, no fundo, a natureza do raciocínio (quando se assume que há). Não à toa, um dos debates mais frutíferos ao longo do século XX se deu acerca das possibilidades ou impossibilidades de participação da audiência na obra, em particular nas artes plásticas, de onde surgem a partir das mesmas demandas e questões algumas experiências tão distintas quanto os Bichos de Lygia Clark, os Parangolés de Oiticica, os quadros de Pollock ou o minimalismo de LeWitt. Contudo, quando saímos de um contexto reconhecidamente artístico e estamos diante da chamada cultura de massas, parece modus operandi mesmo aos bem-intencionados afirmar que a maior parte das pessoas simplesmente "deixa-se ir" com o que vê e ouve, que não há uma vivência real - nem de corpo, nem de mente - ao longo deste processo: não há participação possível. (Também nisso vive a crença ainda iluminista de que a escola consiga elucidar ou conduzir os indivíduos ao saber, de que seja esta sua função última e primeira.) No cume das horas, temos aí mais formas de elitismo bem-intencionado: como se o horizonte de emancipação e esclarecimento fosse, para o aluno, para o leitor ou para o expectador, tornar-se algo próximo do artista ou do mestre, eventualmente superando-o em seu próprio jogo.
Diante da literatura, teses como a obliquação de Alexandre Nodari ou a performance de Paul Zumthor - teorias que pressupõem que um sistema de implicação subjetiva ou corporal diante de um texto seja necessariamente acionado em contato com ele - ainda são minoria. Na franja dos dias, o que temos é a crença de que a leitura seja uma atividade de contato de indivíduos com algo que lhes é, em todos os aspectos, exterior, e que por isso pode modificar estes sujeitos em direção à ação ou à alienação. O projeto escolar de conceber o ensino de literatura não como a prática de procedimentos de leitura, mas como a condução dos incapazes em direção ao cânone, ainda está de pé, e é referendado anualmente pelo vestibular. Em paralelo a isto, ainda cremos que as imagens e os textos carreguem a capacidade que modificar sujeitos passivos, receptores virtuais de informações novas sobre sua própria vida. De lado a lado, somos tidos como incapazes e dependentes de visões privilegiadas de mundo.
Existe, em suma, na base e no topo de toda esta estrutura, uma crença de que haja um real absoluto, mas de que seja impossível representá-lo, às custas de falseá-lo neste caminho. O compromisso do artista coerente e engajado seria, então, assumir-se como enganador, como portador de uma imagem falsa, para então conduzir - captar a benevolência, como se dizia há uns séculos - o leitor ou o expectador a uma revelação sobre o real, que necessariamente tem a ver com a nossa vida. Quando se questiona o que se faria com poetas em tempos de fome, diz-se em outros termos: nada pode a representação diante do real. Quando se crê na revolta que um poema consiga portar, diz-se o oposto: tudo pode a representação diante do real. A dicotomia real absoluto - representação limitada mantém-se e é reafirmada.
Este esquema me parece algo perverso, e aí nos voltamos ao poema que abre nosso texto. Estamos diante de uma cena que se desenha claramente, em que se tenta criar uma identificação entre o leitor e o sujeito que optou por ser alienado diante das imagens, produzindo-se o desconforto de uma acusação que poderíamos compreender como infundada. A voz enunciativa está ausente da cena: paira sobre ela de fato como uma voz em off, organiza a situação tanto através tanto de suas acusações e constatações, como nas quadras precisas em que elas se dispõem. Não se sabe ao certo de onde vem esta voz, mas sabe-se que ela carrega uma onisciência com relação ao que é descrito. Através dela, tem-se a denúncia de que este personagem - eu e você - viu as imagens de fato e o bastante para se conscientizar sobre o real, mas optou por abster-se: mesmo diante das imagens e sua capacidade de chocar, portanto, virou as costas, mergulhou no fluxo das representações que alienam e falseiam. A inferência que se pode chegar a partir disso é "optará você por virar às costas diante do que digo neste poema"? A voz afirma novamente sua autoridade, sua capacidade de portar uma visão elucidativa do mundo, a qual potencialmente não possuímos se nos identificamos (ou até mesmo se não nos identificamos, quem garante?) com o que é dito: a posição, de lado a lado, é infalível.
O paradoxo deste poema de revolta é, portanto, a estabilidade gritante de sua posição. Ela não está em jogo no poema: ela é dada. Há portanto uma crença de que as representações tragam em si um núcleo de mobilização possível, mas que ela exige a consciência e a vontade daquele que as experimenta. Arma-se, assim, novamente o jogo em que quem confia pode vencer, quem desconfia necessariamente perde. A representação está aí, as imagens avisam e podem nos levar - a mim ou a ti - a alguma consciência, basta que nos esforcemos, e é conosco que está a responsabilidade por saber ou não saber. Em nosso caso, é no poema que vive a consciência, e é nesta voz divina que deveríamos crer.
A posição de Porto Alegre, 2016, no entanto, é interessante por não trazer em si a óbvia crença de que as imagens necessariamente alienem ou afastem o sujeito do real, o que traria problemas à própria existência de um poema que buscasse quebrar esta barreira. A solução em nosso texto é, então, jogar para a atividade do experienciador a culpa por não se deixar atingir. A hierarquia do poema está no fato de que o enunciador já passou por isso, já triunfou sobre o não-saber, deixando para nós sua lição e sua moral. Onde estará este enunciador - que, como uma voz divina explica sem estar na cena - é a grande dúvida com a qual eu e você permanecemos.
No fundo, falamos sobre democracia aqui. Sobre como, em verdade, defendemos a democracia muitas vezes a partir de posições não democráticas. Sobre como é cômodo assumir premissas que não coloquem em jogo nossas próprias condições enunciativas, e nos colocar acima das cenas que descrevemos, das situações que relatamos, daqueles a quem nos dirigimos. Um primeiro passo para algo distinto me parece - e aqui o tenho dito sempre - implodir qualquer tipo de essencialização sobre o real e sobre a representação: ao observar como somos, nós todos, atravessados por discursos, ritmos, historicidades heterogêneas, ganhamos em compreensão acerca dos movimentos que tentam enquadrar os indivíduos em categorias, hierarquias, locais confinados. E nos duvidamos como merecedores de posições privilegiadas. Me parece ser esse, enfim, o horizonte primeiro e último da arte.
quando você viu na tv aquelas pessoas em fila na chuva à noite numa estrada na fronteira de um país que não as deseja
e quando você viu as bombas caírem sobre cidades distantes com aquelas casas e ruas tão sujas e tão diferentes
e quando você viu a polícia na praça do país estrangeiro partir pra cima de manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo
não pensou duas vezes nem trocou o canal e foi pegar comida na geladeira
não reparou o que vinha que era só uma questão de tempo não interpretou como sinal a notícia não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca e o barulho de bomba é ali fora e a polícia parte pra cima dos teus afetos munida de espadas, sobre cavalos
(Angélica Freitas)
A infernal alternativa entre dois enunciados canônicos sobre poesia ainda nos ressoa os dias. O primeiro, típico do discurso cínico, se dá nas formas de "para que servem poetas em tempos de fome?". O segundo, típico do discurso alarmista, vê-se na crença de que haja poemas capazes de promover "revolta", como a antologia da Companhia das Letras - onde se encontra Porto Alegre, 2016 - não deixa duvidar. De um lado e do outro, a crença de que o lastro de um poema possa/deva se basear no que existe (ou não) de participação social a partir dali, e aí voltamos aos velhos discursos sobre engajamento, desalienação e arte política, assim como sobre o compromisso de artistas com seu tempo histórico e suas demandas.
No fundo, há uma grande implicação entre estes discursos, opostos numa mesma equação: a não-compreensão de que uma representação seja meramente uma representação, mas faça parte de um sistema de esclarecimento ou afastamento com relação ao que seria um real problema social, uma situação diária incontornável. Com isso, voltamos brutalmente à cena histórica em que temos atuado, onde é comum que se culpem vídeo-games por massacres, quadros por degeneração moral, televisores por eleições de milicianos. A mediação dada pela representação, neste processo, é totalmente negligenciada. Isto significa, necessariamente, que não cessamos de repetir por um único instante como os indivíduos são ignorantes por se deixarem levar pelo fluxo das imagens, como através delas vivem em uma letargia que impede a ação social; por outro lado, como pode ou poderia haver sistemas de representação que, a partir do choque e da crítica, levariam as pessoas a povoar as ruas e praças, estivessem elas simplesmente dispostas a isso.
No fundo, o que está em jogo em todo este processo é a dúvida de que os indivíduos de fato raciocinem cotidianamente, e de qual seria, no fundo, a natureza do raciocínio (quando se assume que há). Não à toa, um dos debates mais frutíferos ao longo do século XX se deu acerca das possibilidades ou impossibilidades de participação da audiência na obra, em particular nas artes plásticas, de onde surgem a partir das mesmas demandas e questões algumas experiências tão distintas quanto os Bichos de Lygia Clark, os Parangolés de Oiticica, os quadros de Pollock ou o minimalismo de LeWitt. Contudo, quando saímos de um contexto reconhecidamente artístico e estamos diante da chamada cultura de massas, parece modus operandi mesmo aos bem-intencionados afirmar que a maior parte das pessoas simplesmente "deixa-se ir" com o que vê e ouve, que não há uma vivência real - nem de corpo, nem de mente - ao longo deste processo: não há participação possível. (Também nisso vive a crença ainda iluminista de que a escola consiga elucidar ou conduzir os indivíduos ao saber, de que seja esta sua função última e primeira.) No cume das horas, temos aí mais formas de elitismo bem-intencionado: como se o horizonte de emancipação e esclarecimento fosse, para o aluno, para o leitor ou para o expectador, tornar-se algo próximo do artista ou do mestre, eventualmente superando-o em seu próprio jogo.
Diante da literatura, teses como a obliquação de Alexandre Nodari ou a performance de Paul Zumthor - teorias que pressupõem que um sistema de implicação subjetiva ou corporal diante de um texto seja necessariamente acionado em contato com ele - ainda são minoria. Na franja dos dias, o que temos é a crença de que a leitura seja uma atividade de contato de indivíduos com algo que lhes é, em todos os aspectos, exterior, e que por isso pode modificar estes sujeitos em direção à ação ou à alienação. O projeto escolar de conceber o ensino de literatura não como a prática de procedimentos de leitura, mas como a condução dos incapazes em direção ao cânone, ainda está de pé, e é referendado anualmente pelo vestibular. Em paralelo a isto, ainda cremos que as imagens e os textos carreguem a capacidade que modificar sujeitos passivos, receptores virtuais de informações novas sobre sua própria vida. De lado a lado, somos tidos como incapazes e dependentes de visões privilegiadas de mundo.
Existe, em suma, na base e no topo de toda esta estrutura, uma crença de que haja um real absoluto, mas de que seja impossível representá-lo, às custas de falseá-lo neste caminho. O compromisso do artista coerente e engajado seria, então, assumir-se como enganador, como portador de uma imagem falsa, para então conduzir - captar a benevolência, como se dizia há uns séculos - o leitor ou o expectador a uma revelação sobre o real, que necessariamente tem a ver com a nossa vida. Quando se questiona o que se faria com poetas em tempos de fome, diz-se em outros termos: nada pode a representação diante do real. Quando se crê na revolta que um poema consiga portar, diz-se o oposto: tudo pode a representação diante do real. A dicotomia real absoluto - representação limitada mantém-se e é reafirmada.
Este esquema me parece algo perverso, e aí nos voltamos ao poema que abre nosso texto. Estamos diante de uma cena que se desenha claramente, em que se tenta criar uma identificação entre o leitor e o sujeito que optou por ser alienado diante das imagens, produzindo-se o desconforto de uma acusação que poderíamos compreender como infundada. A voz enunciativa está ausente da cena: paira sobre ela de fato como uma voz em off, organiza a situação tanto através tanto de suas acusações e constatações, como nas quadras precisas em que elas se dispõem. Não se sabe ao certo de onde vem esta voz, mas sabe-se que ela carrega uma onisciência com relação ao que é descrito. Através dela, tem-se a denúncia de que este personagem - eu e você - viu as imagens de fato e o bastante para se conscientizar sobre o real, mas optou por abster-se: mesmo diante das imagens e sua capacidade de chocar, portanto, virou as costas, mergulhou no fluxo das representações que alienam e falseiam. A inferência que se pode chegar a partir disso é "optará você por virar às costas diante do que digo neste poema"? A voz afirma novamente sua autoridade, sua capacidade de portar uma visão elucidativa do mundo, a qual potencialmente não possuímos se nos identificamos (ou até mesmo se não nos identificamos, quem garante?) com o que é dito: a posição, de lado a lado, é infalível.
O paradoxo deste poema de revolta é, portanto, a estabilidade gritante de sua posição. Ela não está em jogo no poema: ela é dada. Há portanto uma crença de que as representações tragam em si um núcleo de mobilização possível, mas que ela exige a consciência e a vontade daquele que as experimenta. Arma-se, assim, novamente o jogo em que quem confia pode vencer, quem desconfia necessariamente perde. A representação está aí, as imagens avisam e podem nos levar - a mim ou a ti - a alguma consciência, basta que nos esforcemos, e é conosco que está a responsabilidade por saber ou não saber. Em nosso caso, é no poema que vive a consciência, e é nesta voz divina que deveríamos crer.
A posição de Porto Alegre, 2016, no entanto, é interessante por não trazer em si a óbvia crença de que as imagens necessariamente alienem ou afastem o sujeito do real, o que traria problemas à própria existência de um poema que buscasse quebrar esta barreira. A solução em nosso texto é, então, jogar para a atividade do experienciador a culpa por não se deixar atingir. A hierarquia do poema está no fato de que o enunciador já passou por isso, já triunfou sobre o não-saber, deixando para nós sua lição e sua moral. Onde estará este enunciador - que, como uma voz divina explica sem estar na cena - é a grande dúvida com a qual eu e você permanecemos.
No fundo, falamos sobre democracia aqui. Sobre como, em verdade, defendemos a democracia muitas vezes a partir de posições não democráticas. Sobre como é cômodo assumir premissas que não coloquem em jogo nossas próprias condições enunciativas, e nos colocar acima das cenas que descrevemos, das situações que relatamos, daqueles a quem nos dirigimos. Um primeiro passo para algo distinto me parece - e aqui o tenho dito sempre - implodir qualquer tipo de essencialização sobre o real e sobre a representação: ao observar como somos, nós todos, atravessados por discursos, ritmos, historicidades heterogêneas, ganhamos em compreensão acerca dos movimentos que tentam enquadrar os indivíduos em categorias, hierarquias, locais confinados. E nos duvidamos como merecedores de posições privilegiadas. Me parece ser esse, enfim, o horizonte primeiro e último da arte.
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