Há cerca de dois anos, em um trabalho de faculdade sobre Iracema, uma Transa Amazônica, filme de Jorge Bodansky, recebi uma devolutiva da professora - acompanhada de um medíocre e emburrado 7 - que nunca me escapou da cabeça. A breve nota dizia, sem rodeios, algo como a articulação de ideias é boa - sempre é por aí que se começa - no entanto você deveria saber que as discussões sobre o horizonte de nação já estão obsoletas há pelo menos 20 anos. Difícil de se esquecer, de fato.
Este texto, contudo, não quer falar sobre nação.
O disco branco de João Gilberto é, para mim, a maior obra da história da música brasileira. Sei que isso pode soar forçoso diante da magnitude de outras experiências que temos por aqui - e da minha credencial nenhuma para falar de música -, mas acredito de fato que ali haja uma relação poucas vezes encontrada entre abstração e síncope, delícia e simplicidade, grandiosidade e minimalismo. O disco branco me parece o momento em que nosso juazeirense chegou mais próximo de assumir um projeto total de sua música. Os arranjos são claros. A capa é simples. As letras são reduzidas ou mesmo subtraídas. O repertório é absolutamente irrastreável.
Parto deste ponto apenas porque, como pesadamente sabemos, João Gilberto se foi nesta semana. Com ele, se foi também uma das partes mais importantes deste debate sobre o que somos ou poderíamos ter sido como país: aquilo que ali vivia como promessa, como alegria melancólica, como distensão sem hiato. Não vou adentrar esta vereda, é claro. Mammi, Nuno Ramos, Walter Garcia já o fizeram, e os olhos de meu amigo Otávio estariam a postos para me carcomer no mínimo passo fora da linha. Quero pegar deste debate apenas um único ponto (e dele partir para o disparate): a beleza absoluta de se conceber, pelo encantamento do som e por uma forma particular de lidar com o tempo, um alcance e uma potência particulares em um projeto artístico: como se pode, a partir de meras canções, pensar o destino conjunto de toda uma gente e investi-la uma vez mais de sentido, como é possível um ponto de partida tão simples em um debate tão amplo quanto este.
Reformo. Gostaria de, aqui, perceber - a partir de duas manifestações musicais particulares - como é possível pensar uma ética de produção de sentido que possa, em si mesma, dizer algo sobre a vida das pessoas, e como a partir do som de uma canção popular se poderia traçar este tipo de consideração. Se o horizonte de discussão de nação é hoje obsoleto, como um dia ele pode ter sido possível a partir desses objetos simples que são as canções? Creio que a questão é, hoje, essa. E talvez fique mais claro no trajeto, eu espero.
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Proponho aqui, então, uma simetria inóspita entre duas canções.
A primeira é Diamond Sea, do Sonic Youth. A segunda é Undiú, de João Gilberto.
O ruído é uma questão tão ou mais séria quanto a música. Ele é, na verdade, complementar e, em muitos aspectos, indissociável a qualquer história da música que se faça com alguma responsabilidade. Os trítonos, a síncope, o ruído são uma contra-história da música: a história de uma gestão política do sentido, do aceitável, do audível. Não houve poder hegemônico que se constituiu, ao longo da história, sem praticar o esforço de gerir os limites entre som e sentido, ruído e música, natureza e cultura. Nestas beiras vive até hoje o impossível esforço de se domesticar as fronteiras da percepção do viável, de evitar o excesso e o gozo descontrolado. O ruído margeia - e dá sentido, pelo negativo - a tudo isso que se constituiu como cultura hegemônica, como música limpa, erudita e educada.
Em um movimento interessantíssimo, podemos observar, contudo, que somente se constituíram como vanguarda da música popular a partir do século XX países que se abriram - com muita dor e violência - ao ruído. Falo, em particular, de Brasil, Estados Unidos e Cuba. A música destes países se proliferou e diversificou a partir da invasão da síncope, da quebra de tempos estáveis, da sobreposição de elementos, da melodização em primeiro plano: da admissão do equívoco como constitutivo da linguagem. Esta que talvez tenha sido a herança mais duradoura e profícua que a África tenha ensinado ao resto do mundo.
Mas apressando muito o passo (isto é um blog, Vítor), chego enfim ao Sonic Youth. O fascínio que tenho pela música destes estadunidenses se deve, muito em particular, pelo tratamento ético que se dá aí ao ruído. Isto porque, dentro de um gênero musical em que barulho, altura e performance constituem o parâmetro daquilo que é bom, e, mais do que isso, é o timbre - ou seja, algo que foge da harmonia, da partitura, da possibilidade de escrita do som - o que cria uma experiência diferencial, constituir-se como uma banda que se baseia na distorção é algo que sugere enormes dificuldades de proposição de um projeto particular.
E no entanto é este projeto que presenciamos. Creio que o diferencial do SY se observa sobretudo em contato com outras experiências em que ruído, barulho e distorção assumem o primeiro plano. Por exemplo, o que se faz no Shoegaze ou no Dream pop. Nestes dois gêneros, o que se tem é o turvamento da bordas entre os instrumentos e suas as linhas melódicas, a ponto de que surja uma ambientação totalmente pautada em uma neblina sonora em que não se consegue saber o que é o que*, a música cria subterfúgios para si, a performance tende a grau zero (ou à totalização, a depender do ponto de vista), o espaço está assegurado em sua própria pressuposição. Em gêneros como o metal, por outro lado, é o barulho que consegue ocultar a construção da canção como um ato orgânico e disperso no tempo, e o ouvinte tende então a ser levado a zonas cômodas e confortáveis, previstas e previsíveis: a música é a garantia de si mesma.
Ouvindo SY, creio que vivemos um experiência qualitativamente distinta. O que temos em geral é a construção de um rock comercial e, concorrentemente a ele, a sua iminente destruição. Cada música do SY são duas: a canção e a contra-canção. Creio que a melhor forma de se ouvir a essa discografia é, portanto, observando aquilo que está no segundo plano, como uma espécie de resto da melodia central: ali, abaixo, cruzando de lado-a-lado a canção, está o ruído, como uma pulsão de morte, borrando a facilidade do que poderia ser um grande e canônico rock. O SY, como o Miguel Gomes de Mil e uma Noites, escolhe não viver da própria estrutura que ergue para si dentro das canções: a dissolve, a complica, a questiona.
Creio que a maior radicalização disso está em Diamond Sea, do disco Washing Machine, de 1995. A monstruosa canção de quase 20 minutos que encerra o álbum é como uma epopeia, uma metáfora do que seria este mar que lhe dá título. Não à toa, a letra evoca o tempo em seu primeiro verso - a distensão temporal é a grande matéria desta canção -, e a partir dele cria um retrato da divisibilidade do indivíduo, da quebra da imagem de si mesmo diante do espelho. Nada no SY é autocoincidente.
A música se inicia, pois, com uma linha melódica baseada numa distorção raríssima, que facilmente se poderia dizer das melhores da história do gênero: um verdadeiro achado, que poderia estruturar toda a canção. E não estrutura. Tão logo entra a voz sobre bateria e baixo, e sucedem-se quatro codas distintas. É nítido, portanto, que a estrutura da canção é irrastreável. De uma linha melódica simples a música vai aos poucos dissolvendo-se em dezenas de variações de si mesma, vão emergindo gradativamente sons de camadas subterrâneas até que, enfim, eles ocupam o primeiro plano da música e performam o mar sinestésico - azul, mas pontiagudo, belo mas duro - de onde se parte. Sucedem-se mais de 10 minutos de pura distorção, puro ruído (será ainda ruído o que ocupa o primeiro plano?) em mar agitado até que, enfim, retorna o sossego da praia aliviada da melodia final.
A experiência de Diamond Sea é a experiência de uma organicidade das fronteiras entre som e sentido, entre música e não-música: é, acima de tudo, a possibilidade de vislumbrar uma gestão desta fronteira que não seja um tipo de despotismo, mas uma construção de um espaço heterogêneo em que se produza significado a partir da diferença. Não é necessário erguer um muro na fronteira: o muro é uma escolha ética. Parece ser essa, enfim, a grande lição a partir aqui.
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O disco branco de João Gilberto é, para mim, a maior obra da história da música brasileira. Sei que isso pode soar forçoso diante da magnitude de outras experiências que temos por aqui - e da minha credencial nenhuma para falar de música -, mas acredito de fato que ali haja uma relação poucas vezes encontrada entre abstração e síncope, delícia e simplicidade, grandiosidade e minimalismo. O disco branco me parece o momento em que nosso juazeirense chegou mais próximo de assumir um projeto total de sua música. Os arranjos são claros. A capa é simples. As letras são reduzidas ou mesmo subtraídas. O repertório é absolutamente irrastreável.
Undiú me parece, enfim, o exemplo máximo disso. A composição enigmática traz em si o arranjo enxuto característico de João Gilberto dando suporte a sua voz em absoluto transe a repetir esta palavra que não nos leva a sentido algum, mas que nem por isso deixa de ser uma palavra. Ela distende-se no tempo como som puro, e pensamos estar ouvindo apenas uma linha melódica; no entanto, em seguida, nos recordamos do título da canção e novamente estamos entregues à busca tão humana pelo sentido daquilo. Hesitação. Undiú é e não uma palavra: é som e é sentido, girando incessantemente nesta voz que ativa a todo momento este campo de indefinições.
Para além dos momentos de undiú, temos também as transições em que João canta melodias feias de maneira bela, como a integrar um cantador sertanejo - em sua lógica exterior à Canção - em um arranjo moderno e jazzista: e novamente giramos juntos com esta voz que aciona dois campos distintos da experiência, tanto musical quanto social. Há aí, no encantamento da melodia e da entonação, a presença sutil do ruído, que se insinua mesmo na capa deste disco, no nome quebrado de João Gilberto disposto pelas linhas, na foto que parece ter sido tirada sem que ele próprio percebesse. A relação, contudo, entre o sertanejo e jazzista não é, em Undiú, a de síntese simples, muito menos a de emulação - como ocorre na versão de Caetano para Asa Branca, por exemplo: há aí uma espécie de acionamento de uma consciência de que estamos lidando com as mesmas questões, com a própria possibilidade de se fazer sentido diante do mundo e diante das coisas. Questão que a palavra (palavra?) Undiú não deixa de ecoar.
Creio que a apuração e a abstração das canções de João Gilberto nos fazem sempre esquecer de um dado importante: estamos ali no mundo da síncope, diante do enigma que pode significar algo como a percussão da versão de Na Baixa do Sapateiro, do mesmo álbum branco: sublime e composta na tampa de uma lixeira. Estamos ali na quebra em que se encontram duas tradições do ruído: o jazz e o samba. O jogo da abstração e do encantamento de João é também um jogo de gestão do ruído em que se constituem espaços em que a quebra torna-se constitutiva, e o equívoco consegue passar para o lado da estrutura que soa como pura. A pureza do que é impuro, a impureza do que é puro. Há aí um imenso testemunho sobre como dizemos o mundo.
A distância de Sonic Youth a João Gilberto me parece, então, a distância entre dois pontos simetricamente dispostos ao redor de um centro estável, que poderíamos chamar de ética. Se em Sonic Youth o ruído impede a estabilização, leva sempre a regiões imprevistas e subterrâneas, em João Gilberto a abstração internaliza o ruído como condição de existência, como aspecto construtivo do encantamento. O que temos de ambos os lados é uma gestão do heterogêneo que foge tanto da síntese fria como da exclusão despótica: estamos lidando com topologias em que campos de relação são criados como novas formas de dizibilidade. E isso me parece muita coisa sobre o que somos ou poderíamos ser como sociedade.
Por isso volto à questão inicial, de onde a música conseguiria oferecer um escopo para discussões sobre o indivíduo e suas relações sociais. Creio que o está em jogo aqui é justamente o que se pode dizer, de que maneira se pode dizer, e em quais circunstâncias. A música me parece, enfim, oferecer um espaço privilegiado para pensar maneiras de se lidar com essas demandas políticas: e basta pensar, por exemplo, como do encontro de João Gilberto com Sonic Youth podemos chegar a algo como o Metá Metá.
Neste sentido, ouso duvidar de minha professora, e lhe pergunto caudalosamente de volta: como abdicar da tentativa de ampliar algum tipo de experiência sensível?** Se as próprias experiências estéticas são elas mesmas um fluxo potencial de reenvios, como considerar algum assunto simplesmente como dado ou limitar o seu escopo? O que está em jogo é o fim de qualquer perspectiva de se falar sobre o outro? Ou estamos abdicando de algo como a nação em troca de meras experiências individuais em que cada um assuma seu lugar próprio de enunciação? Não resta nisso lição alguma do ruído ou do equívoco? Tudo isso apenas sugiro. Que restem aqui ao menos as canções, e já estou vingado.
*Só se consegue explicar o sonoro pelo visual, o visual pelo sonoro, o tátil pelo visual, etc.
**Sim, eu sei que ali o ponto de vista é estritamente historiográfico...
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