Tincoãs. Tincoãs.


Senhor,
por fim.

Aqui está o quem, de coragem e de covarde, te escreve estas palavras, inda parcas e mirradas, cores mesmas que as digo, e te envia, de amigo, em cruzando a tua banda, como linhas que indico. Sei que o senhor bem já sabe, que de início um pedido traz no bojo uma resposta, que carece relhenar. Que segundo, não se pede a quem não pode falar. Que terceiro, que eu sou uma légua a mais em mim. Eis o tudo que eu tinha que levar de teu desejo, o mesmo que dele corre, dele escorre e dele eu vejo: que não. Mas explico.

O senhor me conheceu resvalando a mim aqui, esta casa, as galinhas, como certo e bem se viu: magras, poucas, bem contadas, que eu sei, só sei saber: comem milho duas vezes, comem mesmo que tiver: sete bichos no total, mas já foram trinta e três, tempo em que olho tinha força, e o olhar molhava a tez. Pois é isso que eu sei: sete aqui do lado meu, sob o branco, sob o preto, ante o que foi minha vez. Que é mesmo, meu senhor, que eu sei do que não sei? Estas sete tão galinhas inda sete inda seriam margeando o lado seu? Logo aí, em vila amarga, que é que galinha come? Papel, fruta, cal, canção? Se eu não tenho pé no chão, como disseste tem mês, é pois tenho pé no chão, disso sei e sei e sei. Então. Eu me lembro bem. Senhor disse ao pé do poço, sugeriu lasca de estória para eu bem mobiliar, me fendeu foi um pedaço, ofereceu bom bocado, mas eu digo, e desenlaço, que não quero e nada faço: estória, senhor, renego, reine tu, saiba reinar. Papel? Pombo. Risco? Riso. Estória onde é que está?

Moço cá já deu conselho, isso só se nega ao cão. Moço cá tinha razão. Disse ele, precedendo, e por isso certa feita, homem imagem aqui veio retratar sua criação. Fosse isso era sentido, mas não era isso não. Era a estória, isso dito, cada vaso, cada cã: pegou, guardou, relatou. Reportagem reportou. Viajeiro viajou. Nós aqui no mesmo acento. Nós aqui no nosso não. Outro veio, disse manso, era estória sendo história, em ouvido assobiando pelo mundo nossa glória; nosso ser não esperando, tanto ouvido tanto oco, tanta boca de funil. Viajeiro viajando: nós aqui a despedir. Treslocou, foi quase louco: tinha ele duas mãos, mãos fendidas de esculpir, mão querendo a segurança, vida inteira quase ali, toda ara, e a seara, toda fome, todo o viço, todo o mundo nunca visto: ele que carrega a forma, vão, na cor do seu senão. Sorte: é moço água torta, endurece então remansa, se retorna e ser-se volta: tempo é tempo, e olhar olho, todo atraso é viração: eis que moço tem razão: conheceu o conhecer, isso basta pro sermão.

O meu nome senhor sabe, não tenho sua metragem, e nem a sua pele eu visto. Não me trajo com lembrança: senhor sabe, mas explico.

Eu tenho pele, tenho osso, sangue, tudo isso que o senhor tem
            mas meu personagem não.
Ele só tem som, na boca da noite, na calada
                                                                       se cala é adeus.                                             
                                                                                              Como a estória, e a história
que é feita não de barro, mas de som
                        e mais nada.
Nó no ar.
            Sopro.
                  Silêncio.
Mas,
e se mente essa palavra,
            como ébria, e maldita?
                                                           A história é o já não sou.
                                                                                                          É moço outro.
                        Que eu nem sei como que digo.
            Daqui mesmo é estranho, dessemelhante
mas sigo (é outro moço).
Escuta.
                        Pense em minha roupa, pense junto em sua cor:
                                   e se vira lenda vira, pois? Vira outra, desmedidamente outra:
                        de roxo para azul, espaço.
                                   Sapato pra botina, abismo.
E se arado se torna, em minha mão, fuzil
            que é que eu me torno?
                                               Mulher em homem,
                                                                                              chuva em nuvem,
                                   ou o quem em que?
E bem, ao cabo, ao que motivo?
            Senhor quer me fazer em algo: fim e começo: pra se contar,
                                                                                               e se ouvir. Pois bem.
Onde que eu fico neste caminho?
Em que bar,
            em que margem de estrada
                                                                                  em que ouvido que eu fico?
Com que palavra me recontam
            se nada disso me rediz?

Que eu fico parado na beira do meu próprio mim, e daqui vejo bem. Eu, de minha casa, vida em cadena, marca de arado, parte do tudo. Eu, na beira de um rio escuro, e fundo, seus peixes de noite e de absurdo. Eu e a margem, sendo um só: uma única pessoa só.

E assim que eu recuso. Porque sob estrela se envelhece, no que passa a vida: ficando. Se agora, meu senhor, já me chama em sua forma, me deschame, me denote, rejeito eternidade. Finda o vulto, o dia findo, finda o olho salvador: não há nada, nem estrada, nem mesmo que haver podia. Que semeie, que engendre, que se nasça e se suceda: herdo ao vento, herdo à fala, herdo à hora esta tal fé: minha metade é inteira. Que o senhor se torne a todos: cem, trezentos e cinquenta: mas que todos eles saibam de meu nome: unicamente.

(Mas me lembro. E resulto. Que o mundo vale outro. De um dia. Era novo, como a morte, e seguia, pra um destino, pelo lado, desta serra, passo o hino, canto a reza. Um estouro. E outro, e outro, e outro. Tiro-e-tiro. Corre que vive, e Vira do avesso, e Cadê o meu filho, e O diabo te beije. Escondido num sino, mais de hora infinito, a vida escapando, em cada ruído, sem olho pra ver, sem mãe pra rezar, sem cego a prever, sem dó a exalar. Silêncio no fim. Respirei ainda vivo, mesma hora parti, sem pensar no vivido. Inteiro: e então. Perguntasse à história sobre o que foi possível: cor dos homens se diz: nome, forma, e razão: o motivo ela poda, põe na palma da mão. E só. Eis que deixo a questão, mesmo posta a resposta: que história quadra estas mãos, este ente? Que ela sabe das horas que larguei pelo chão? A terra exalando um cheiro, nem de corpo nem de tiro, a terra um cheiro sem tino, sem veio e sem motivo: árvores secando fruto, ave nenhuma voando, a porta do céu se fechando ante o nosso caos horror. Neste dia, minha jura, digo e diga quem balança, nem um ventre, nem uma alma, nem um choro de criança, além desse, que ressoa, até hoje, dentro aqui, quando esqueço, pela noite, do dia em que eu não nasci.)

Isto dito, cá termino, com o cisco de um pedido, em proveito a ocasião. Se quer mesmo, na esquivança, a escrita do seu ver, pois que escreva em tinta franca, verde como o que sonhei (que sonhei e que sonhamos, eu mais tu mais as meninas, tão distante, tão passado, que quem viu até duvida). Que verdeje o seu ser, verdadeiro personagem, vertigem da solidão, meu direito e meu papel, e também minha cidade. Pois se eu quero a viração, sei também do meu destino: e que possa, como homem, atender o meu pedido.

E volte cá quando puder. De humano venha vestido. Que eu cá fico esperando, esquecido o seu motivo. Entre os olhos e os ouvidos: nesta terra tincoãs. Em todo o possível sim. Tincoãs e tincoãs. Veja se isso está escrito.



[Publicarei aqui, aos poucos, numa espécie de epitáfio, todos os textos que arrisquei e desisti nos últimos anos. Nenhuma pretensão nisso para além de dar um marco final para processos que não resultaram em algo significativo, mas que ao menos  ficam como rastros.]

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