Essa é a marca da minha margem em mim


Acordo, abro as portas, espero pelo fim do dia, fecho as portas, durmo. Acordo. Eu. Tem sessenta e cinco anos, isso. Todos os dias. Sim. Você sabe bem. Deve saber. Que você me conhece, desde que eu te conheço. E então. Mais nada. Mas olhe, que eu vou te dizer, algo. Uma coisa. Porque foi o dia quem me sugeriu. E do dia não se discorda. Algo. Não tudo. E mais nada. Creia. Creio.

Te confesso que me pesa um peso forte pelas horas às vezes. Que eu poderia chamar de derrota, mas não chamo. Que eu poderia chamar de tristeza, mas não chamo. É algo como. Um pessimismo. Um pessimismo atávico, dizia um médico que eu conheci há vinte e três anos, exatamente. Mas que eu prefiro chamar só de pessimismo, mesmo. Ah. Vendo a tua cara eu já sei que confundiu foi tudo. Não, não é esse que se vende por aí, que embrulham nos jornais e guardam em grandes caixas escrito frágil, e que traz a tira colo uma porção farta da credo-cruz escuridão. Aquilo é carne de cavalo. Não, não. Mas, veja, do absurdo, no entanto, que: na cidade, antigamente, noventa e dois por cento do que eu via era feito – massa e molde – disso. Daquilo. Antes de eu voltar pra cá. Não. Não mesmo. O pessimismo que eu falo é outro. É o daqui, que nasce no rincão do olho do homem de cana e de pão, desde que ele nasce. Um tipo de ser fatal, de viver fatal, de caminhar com a certeza de que acertar e errar são lados de uma moeda dourada, a mesma. Saber que é o vento que empurra os ponteiros das bússolas, e mais nada. E por que o vento é mesmo? Porque o vento é, e por isso é o vento. Você entende? Entenderá, se não hoje, talvez.

Essa é a marca da minha margem em mim. Da nossa. A minha em mim, a tua em ti mesmo. Este sentido que me tomou como que de assalto, e me fez te pedir para ficar, mesmo com tanto a se fazer, que é quase cedo, ainda. Daí que te digo isso tudo, algo aflito, que sei que ouvir cansa mais que dizer: que ouvir é parte do outro, mas dizer é só parte de si: questão de pôr um limite ao próprio amor, naquilo que te forma da forma como você mesmo se desconhece, sabe? Nem eu. E é isso mesmo. O pessimismo. Eis: pois jamais me fez viver pior, e, pelo contrário, no hoje: é este sentimento que, quando me vem, me faz acordar ainda mais cedo, e abrir as portas ainda mais cedo, e esperar pelo fim do dia algo mais longo. Este meu sentimento agreste, nosso. Meu. E por isso sei que não é pessimismo de vida o que eu sinto: esse é o da cidade, e lá estão eles. O meu pessimismo é de morte. O nosso. De saber que nada está fora de seu lugar, e que mesmo se eu arrancar uma pedra absurda do chão e arrastar essa pedra pro meio de uma rodovia sabe-se lá com que força, saber que a pedra não ficará nunca fora do lugar que ela devia de estar. Viu? É isso. Este que é o nosso. O meu. Porque em cada grão do dia tem um risco feito de ponta de faca, que foi a morte quem fez. Cada minúsculo pingo do dia tem risco dela, também. Sabe? Eu também.

Se eu já sonhei com ela? Ah, jamais. Como é se sonha com a morte? Não conheço o nome de tanta cor assim. Nem tenho tão poucos olhos. Ninguém sonha com a morte: sonha-se é com o morrido, com o vivido, e com o amado, essa é a verdade. Com o não-amado também, é mesmo. Mas se não se ama também é porque não se era pra amar, porque não se encaixava no espaço de um coração, um amor quadrado. Mas e só. E é sobre isso que eu falava, sim, justamente. Atávico. De morte. Como de fato. Com a morte não se sonha, não, jamais.

É, você tem razão. Está tudo mais caro atualmente. Mas antes também não servia era de nada isso. A gente não saía do lugar. Hoje a gente só não quer mesmo. É bom você ser assim, sabe, falar dos negócios e dessas mirras que a gente vende pros silêncios daqui. Já aprendeu o que é a vida, ligeiro como se tem que. E então seguirá indo: te vejo, e mesmo se não visse, veria: tá escrito. Eu fui. E inclusive me lembro bem de quando parti: meus sapatos do tamanho desses seus, assim. Me lembro que tal época se podia comprar com umas moedas o triplo do hoje. Me lembro que os cavalos levantavam poeira pra depois das seis. Me lembro que eu estava uns vinte e cinco anos antes do depois. A verdade me deu um arroubo, e eu fui pra cidade, mas disso até tu já sabe. Não esqueço do medo daquelas lápides onde as pessoas viviam e se escreviam. Morbidez do mundo. Disso eu me lembro também. Fiz algum dinheiro porque tinha que, e daí voltei. Mas disso tu também já sabe, que está me ouvindo agora falar com você.

Não, pode acreditar. Fui sim, matutei e matutando. Disse para os meus olhos que eles teriam que se acostumar com formas outras, que às vezes seriam até a falta de formas. Disse para meus pés que os caminhos agora seriam trajetos. Disse para mim mesmo que era isso que eu precisava fazer, me desviver, me subsumir, e pensar numa vida com mais sede de si mesma. Menos entregue a algum talvez vento que pudesse me levar aonde bem entendesse, e devesse. Se me entende? Pois essa era minha vontade: vontade. Que brotou da rua vazia, das casas antes tomadas pelos camaradas que eu deixei de ver todos os dias nas mesmas horas de todos os dias. Todos se tinham ido, era pra eu ir também. Assim penso, e pensava, e pensei.

Chegar na cidade foi me tornar. Fui me virando até as medidas. Me virei a rua, a calçada, o homem que não tinha pai porque não o conhecia. Me virei a briga, a palavra interrompida por um barulho altíssimo, o fiscal de rendas em serviço. Me virei o defunto num saco de lixo preto, a repetição dos mesmos gestos dos olhos, o saúdo não respondido, a palavra desinterpretada. Tudo, e tanto. Ganhei bastante sim, considerável: mas quando percebi que minhas costas já não pesavam mais, e que minha luz era só saudade de sombra, daí sim. Daí tive. E tu me entende? Então vou lhe dizer o que houve.
Vinte e cinco anos, seis meses e três dias depois de eu sair de casa, teve uma manhã. Uma manhã como essa, não a mesma, só idêntica. Eu tinha que abrir as portas, lá no centro, ao lado de alguma coisa que tento não lembrar à direita, e de uma loja que não me lembro mesmo à esquerda. Acordei cedo, como sói. Saí para cruzar o caminho a pé entre meu sobrado e meu destino. Passava por entre homens noturnos, iguais àquelas aves dos calendários; igual dizem delas. Eu vestia uma blusa azul clara com uns detalhes de marrom, uma calça que era apenas uma calça, e dois sapatos marrons tamanho quarenta e um que são estes mesmo que estão no meu pé agora, acredite. Depois de ter completado algo como um quinto do trajeto, foi que me aconteceu. Eu estava na frente de um farol, que naquele momento avermelhava minha cara. Assim como o céu acima. E o chão abaixo.

E então arrodeou um silêncio meus olhos. Um silêncio no meio daquela querela de homens finais. Um silêncio que não era o da terra e do vento e das coisas em seu estado de permanecer. Era um outro tipo de quietude. Ao meu redor, parece tinham erguido um estádio e enchido ele de pessoas: de pessoas marrons, e brancas, e pretas, e altas, e baixas: e enchido apenas para que cada uma delas ficasse calada, morando no si, e me fitando com frio: e eu no meio de aquilo tudo, sem saber aonde olhar, e como ver: era como se cada pessoa daquelas tivesse de alguma forma dado origem a meu corpo em algum momento: e como se cada um desses momentos chegasse ali através dos anos e das décadas e dos séculos escorrendo pelos olhos silenciosos daquelas pessoas: e isso apenas para que se pudesse cerzir o lençol do silêncio que me cobria e me dizia: ali, juntos e todos, ali, ao mesmo tempo, a me olhar o homem inteiro, de uma vez só. Eu me sentei. No campo verde daquele dia. Na calçada úmida daquele dia. Eu esvaziei os bolsos. Todos. Indiferentes. Eu estava sentado, com as pernas cruzadas, com as mãos amolecidas, num tempo em que não havia nenhuma língua, ou que só havia surdez, as costas curvadas. Não se falava. Eu era eu.

E foi neste segundo que eu decidi voltar pra cá. Vendi minhas coisas, respeitando o valor que elas tinham. Juntei as quatro camisas, as três calças e o par-de-sapatos. Volvi. Todo o resto é o que você está vendo em seus olhos: isto. E daí? O saldo disso? Atavismo. Palavra torta, significado imenso. (Dando nome às coisas que a gente vive, a gente acaba revivendo) De morte. E então esta tarde. As imagens fazendo uma parte do mundo viver, ali, nas palavras em que a gente se lembra. Um talvez. E todo o resto a viver ao lado do velho e negro deus. Ele, quieto, um cão que dorme, um lenço caído, um nada que é só a gente que ouve e vê: secreto: ele, o movimento dos olhos, e o barulho do silêncio. Ele, nos fazendo lembrar da vida, enquanto a dita. Ele. A tecer nossa morte em nossos passos, sempre outros. Passos que vivemos, em que nos espreitamos.

E é essa inteira a minha vida. Te juro. É justo que você me olhe em siso e não acredite no que eu digo; que me peça passagens com cangaço, com danças que terminam na semana seguinte, com miragens, mulheres, com não sei o que mais. Mas não. E exato. Porque a vida é isso mesmo o que te conto, e olhe: porque é só disso que me lembro, e que ainda vivo, e faço dizer. Mas me escute sim, e então não se esqueça, neste ao cabo: que o mais importante no que existe é aquilo que pode ter tido importância nenhuma: é nesse nada que vive muita coisa, que em sua valia foi pensado, e suposto. Papel em que a história é traçada. Lugar em que se pode ser. Valor que a vida se dá. Tudo: eterno nada: outra vez tudo: nada outra vez. Agora vá. O dado está dado. E eu já ouço o trem apitar.


[Este texto é um espólio do livro água / olhos, infinitamente inédito]

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