A quietude é quase um sonho - Notas para uma poética de Fellini

(A banda Fellini, no caso. Para o diretor, ver Gilda de Mello e Souza.)

       O enorme inverno da arte brasileira nos anos 1980 tem poucas breves miragens de sol. Há muitas explicações correntes para isso, e a minha preferida certamente é aquela que consegue associar a perda de um horizonte de expectativas ao encurtamento de um espaço de experiência social (nos termos que se pega emprestado de Koselleck): o país que perde mesmo os moinhos do discurso nacionalista-desenvolvimentista e o substitui pelo cotidiano atormentador da hiperinflação é aquele que passa bruscamente de um nexo social - frouxo e reacionário, mas um nexo - para a realização individual dos termos da vida social - sobrevivência antes de vivência e muito antes de experiência. Materialmente, isto se manifesta pelo fim ou enfraquecimento dos grandes projetos de fomento à cultura e, noutro plano, pelo próprio ocaso dos grandes projetos estéticos coletivos dos 1970, como o Cinema Novo, a Boca do Lixo e a Tropicália.

       Não à toa, os raros momentos de honestidade intelectual na arte dos 1980 no Brasil foram aqueles em que se internalizou na forma os próprios limites de concepção de qualquer projeto artístico, diante das machadadas da vida cotidiana que adiantariam os Francis Fukuyamas dos anos 1990. Aí estará a escrita de Ana Cristina César, em sua potência de desestabilização constante dos fluxos enunciativos; aí estará também o encorpamento das experiências de formação de estéticas de periferia, sendo o nexo da parte-dos-sem-parte o momento de maior força já presenciado na arte brasileira (e que também irromperia nos 1990 sobretudo com a amplitude nacional dos Racionais Mc's). Aí estará, por fim, a cena paulistana ao redor da Baratos e Afins que repensará o post-punk (desde a origem a trilha sonora de um abandono, de uma ressaca imensa) a partir de termos particulares de sua realidade social.

       Olhando-se para o rock brasileiro dos anos 1980, nota-se de fato uma tentativa de assumir um tom de crítica e denúncia da realidade social imediata: no entanto, para longe do sentido periférico do nosso punk tardio em As Mercenárias, Cólera ou Inocentes, é evidente que o tom das denúncias dos Titãs ou dos Paralamas do Sucesso parece ecoar muito mais um comercial do Criança Esperança do que algo que o The Clash tenha feito na década anterior. Talvez o desacerto de tom aí se deva principalmente às pressões pela construção de um mercado fonográfico mais encorpado e voltado para a classe média - vide o Rock in Rio e os nossos Cazuzas - que não admitiria determinadas palavras, discursos, alturas, sonoridades por ora. Por isso, as respostas de maior amplitude e profundidade me parecem estar muito longe destes lugares em que o mercado assentava os limites da contestação e da ira(!) a ser externalizada - sem haver nisso nenhuma celebração do "impopular" ou do "exótico", mas o reconhecimento da falsidade de constituição deste "popular" que se ergue às pressas no Fantástico.

     
     
       Nisto encontramos, enfim, o Fellini ali sentado, cabisbaixo, sob um viaduto da 9 de Julho. Esta é a imagem.

       A trajetória da banda se inicia em meados dos 1980 com um disco que já se anuncia como despedida de algo (O Adeus de Fellini). É certamente um disco que se propõe a repensar o espaço de experiência social a partir daquilo que está ali presente em ausência (como Nada, em que se tem uma extensa enumeração do que não existe), e que manifesta a impossibilidade de se aderir plenamente a qualquer estética ou forma cristalizada de pensamento (as figuras do ex-skinhead, do ex-socialista, da cultura como mercado e cisão de classe, dos homens que ateiam fogo às suas guitarras há muito tempo, do pastiche que é o rock europeu a partir de sua recepção noutra realidade social). Que se note também o espólio das experiências anarquistas do começo do século que emergem partir da violência insuperada do mundo do trabalho (Funziona senza vapore), e de seus locais e pessoas; que se note também a impossibilidade de protesto ou de respostas, de qualquer tipo, a perguntas que ninguém fez (Nada, Cultura, História do FogoOutro Endereço Outra Vida); que se note, por fim, a defasagem apontada entre a percepção e a experiência: eu vi seu corpo na TV sendo imolado/ sua imagem/ muito papo furado.

        Mas o Adeus de Fellini é um disco que, longe da receita óbvia, rejeita a melancolia para então propor a negatividade, isto é, cria um contraste entre um som ainda eletrificado em suas guitarras e seu baixo pesados e sujos e o tédio que parece emergir das letras, como da experiência social daquilo que é sempre o mesmo. O interesse neste disco, portanto, é em sua quase raiva, seu quase apelo ao corpo, seus quase berros, sua quase possibilidade de alegria ou de tristeza. Como se o post-punk deixasse muito mais didático o porquê de ter, afinal, este nome: surge de fato de dentro da experiência corporal e performática do punk, dando-lhe adeus.



          O segundo e o terceiro discos (Três lugares diferentes e Fellini não morre duas vezes, respectivamente) marcam uma virada na sonoridade da banda, largando mão dos acordes de guitarra e do baixo pesado e assumindo a bateria eletrônica que permitirá uma marcação sem sustos, uma frieza colossal justamente no ponto maior de síncope possível (e nisso às vezes será quase um samba). Em Três Lugares Diferentes, um disco bem mais interessante que Fellini não morre, nota-se um esforço nítido de produzir um enorme comentário sobre suas próprias condições de existência, a partir de múltiplas colagens de trechos de programas de rádios, citações literárias em outros idiomas, frases com sentido obscuro, e da presença de uma segunda pessoa - há sempre este você que compartilha o espaço físico, mas não necessariamente o de experiência - que acompanhará toda a trajetória ulterior da banda. A melancolia - de fato melancolia - aqui encontra fundo numa sonoridade particularmente cortante, com timbres de guitarra metálicos e a gaita sempre no limite da falta de sentido musical: ela ganha camadas de profundidade, portanto, e o discurso novamente esbarra na sonoridade. Todo este contexto formará uma construção sintomática em que sempre se encontrará pseudo-narrativas, quase histórias que se delineiam mas nunca se cumprem - não se sabe nunca quem, onde, por que: e me parece ser isso também um testemunho de uma tentativa sempre barrada de dizer algo, como o humor que esbarra na tristeza (e vice-versa), como a melancolia que não encontra puro resguardo no som. É profundamente incômodo, e por isso é interessante.

(No terceiro disco, contudo, este método chega ao absoluto limite da indiferença entre as formas, sendo todo o sentido pavimentado por essa melancolia que parece não ter fim ou princípio - e que prejudica observar qualquer projeto artístico ou musical. Perde-se o desencontro fundamental no segundo disco, tem-se uma experiência da tristeza pura em letra e sonoridade, incapaz de produzir atenção por ser sempre a variação do mesmo.)

     
         Amor Louco encerra de fato o adeus de Fellini à experiência corporal do punk com a redução das guitarras ao mínimo: assume-se o violão de sonoridade ríspida e o sintetizador que aponta justamente para um outro tipo de genealogia musical, mais próxima do new wave. A quase narratividade e a segunda pessoa do segundo e terceiro discos encontram aqui a clareza de um espaço fragmentado como o da megalópole em formação, em que o diverso encontra nexo a partir da violência, não se negando a diferença de origem, mas a mantendo como estranheza. Aí se encontram as referências tão menos explicáveis quanto mais claras - Aeroflot, Kandinsky, inglês-italiano-latim, Amor Louco (algum dos filmes ou a obra literária?), rio Tietê - que permeiam Amor Louco mais do que qualquer um dos demais discos da banda. A frase que resumiria a poética deste disco sai de Cidade Irmã: nada que nos una/ vendo a lua saindo de um prédio. Existe uma experiência social, e esta experiência é justamente a sua impossibilidade: não é portanto o neoliberalismo imbecil dos 1990 que se anunciaria ao tentar "constatar" como o mundo se resumiria ao indivíduo, mas sim o indivíduo dando testemunho da existência, em algum lugar, de um mundo inevitável (as coisas existem em si mesmas) na violência que é sua atual ausência.

A análise de caso ficará com Grandes Ilusões, de Amor Louco:


Noite Alta

Céu Risonho

Como quando você fala durante o sono

Meu pai aponta na árvore o fruto estranho

O amor universal

Grandes ilusões


Você não morre mais tão cedo

De tanto que eu circunavego seu nome

A meia lua de bandeira turca

O Metrô

Grandes ilusões


O filho do filho do filho do homem

Um tempo para nós

Grandes ilusões


A quietude é quase um sonho.


         Abdicando até da bateria eletrônica, Grande Ilusões é em si o exemplar mais contundente da dialética ríspida que Fellini não cansa de propor. Ela começa no violão circula sobre uma base de sintetizador, às vezes soando agudíssimo como a gaita que aparece, e cria um duro contraste de registros que parecem muitas vezes sequer se conversar, como se não houvesse passagem possível de um para o outro (e no entanto aí estão, juntos). Os versos ecoam este movimento ao praticamente justaporem registros narrativos, enumerativos, dialógicos e evocativos, cujo nexo nunca é claro. Olhando-os de perto, vê-se a presença de elementos do cotidiano mais imediato ao lado daqueles que evocam a realidade totalizante: de lado a lado, são grandes ilusões. Com isso, desvela-se o intrincado jogo de referências que a música faz sem explicitar-se, sobretudo o fruto estranho da antológica canção estadunidense (e note como a absurda violência da referência pode ser ignorada caso não se conheça ela), noite alta/ céu risonhoa quietude é quase um sonho, versos de Noite Cheia de Estrelas, consagrada por Nelson Gonçalves, e mesmo o deslocamento proposto em você não morre mais tão cedo, frase do repertório mais popular possível - mas ressignificada pelo verso que a sucede. Nenhum objeto tem um lugar estável na canção, como nenhum objeto do passado ou do presente tem lugar inerente na realidade social que insiste em distorcer tudo o que toca.




       Com isso, nota-se a enorme dificuldade de efetuar a passagem natural de um verso a outro, de um registro a outro, do global para o individual (e vice-versa). O amor universal e o metrô, o filho do filho do filho do homem (Deus?) e o você da intimidade: as referências só tem em comum o fato de serem grandes ilusões, e o falso de uma parece ser justamente o falso da outra. Não há cinismo aqui, outra vez: não é uma mera constatação da diferença dos diferentes, mas a tentativa de notar a igualdade dos diferentes em sua diferença. A dialética é complexa: a quietude é quase um sonho, isto é, a estabilidade de quem dorme é a instabilidade das palavras que dali saem: não há síntese possível, como se houvesse aí a negação de qualquer experiência que tentasse dizer que as coisas são como são, que a história acabou, etc. A ilusão não é necessariamente uma perda, aqui ela se parece muito mais uma miragem: algo crucial para situar a existência das coisas em qualquer realismo possível.

     Nesta dialética árida parece, enfim, estar a mais duradoura verdade de Fellini: o deslocamento, a desestabilização. Musicalmente, é um quase punk, um quase post-punk, um quase new wave e um quase-samba; liricamente, constrói quase narrativas, quase referências, comenta a si mesmo a todo o momento como a especular sobre as próprias possibilidades de existir. Este movimento parece ser, ao cabo, uma resposta política de absoluta força, justamente pela duração insuperável do estranhamento que propõe, justamente pela justeza de sua pretensão. Em uma década em que se tentou em todos os planos da vida social criar ordem como resposta, primeiro, da experiência da falsa ordem (o militarismo), depois, daquela do absoluto caos (a urbanização conservadora, o estado falido, a hiperinflação), o Fellini parece dizer que talvez o erro seja em opor cegamente a ordem ao caos, como extremos incomunicáveis e antagônicos (o cinismo, afinal), e então determinar aí a posição dos indivíduos e dos objetos. A constituição de 88, um ano mais velha que Amor Louco portanto, com suas promessas de ordem sucedidas pelos frutos estranhos que nascem todos os dias da nossa experiência social atual, parece depor a favor do que Cadão Volpato, Ricardo Salvagni, Jayr Marcos e Thomas Pappon fizeram aqui.

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