I
Há, durante o indispensável Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014) pelo menos seis
longas sequências de personagens subindo ou descendo escadas e rampas. A mais
longa destas sequências, em que Marquim desce um elevador em casa, tem cerca de
2 minutos e meio, e provavelmente contribui para os comentários que criticam no
filme sua “lentidão” e sua “falta de ritmo” – comentários esses que se esforçam por não compreender a relação entre permanência e acontecimento histórico impressa a
cada dia no corpo daqueles indivíduos feridos, amputados, com sequelas
promovidas por um Estado genocida, e radicalizada na própria estrutura da obra como ritmo.
Mas
a questão sobre estas sequências aqui é outra, e se liga sobretudo ao
espaço/tempo que estas ações e acontecimentos “secundários” à trama de
determinados filmes têm ocupado em algumas obras nacionais contemporâneas, sobretudo
do cinema mineiro. Aqui se poderia listar, então, No Coração do Mundo (Gabriel Martins e Maurilio Martins, 2019), A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa,
2014), A Cidade Onde Envelheço (Marília
Rocha, 2016), O Homem das Multidões (Cao
Guimarães e Marcelo Gomes, 2013), Trabalhar
Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2014), Chuva é Cantoria na Terra dos Mortos (João Salaviza e Renée Nader,
2018) e, particularmente, Temporada (André
Novais, 2018), um dos filmes - estou certo - mais importantes da história do cinema nacional.
Sobre este último interessa particularmente observar como a construção da
profundidade psicológica de Juliana, personagem magistral de Grace Passô, passa
não por monólogos aos emocionantes, acontecimentos traumáticos e pirotécnicos ou
cenas de dramaturgia exacerbada: o que se tem é um mosaico de dias úteis, em
que ir ao trabalho, ouvir mensagens no celular ou ter diálogos na beira de um
piscinão contribuem, sutil e silenciosamente, à emancipação final da personagem
– entendida não pela chave liberal do empoderamento, mas a partir daquilo que
Judith Butler chamou de agência, isto é, a atuação do indivíduo a partir de sua
reflexão sobre si e o mundo, em sua falibilidade universal. E eu já falei
demais aqui.
A
questão é notar a partir desses exemplos como, mais do que uma escolha estética
particular, a preferência pela narrativa do simples, por um mundo sem plot twist, tem sido uma tendência do
cinema brasileiro contemporâneo, com largas implicações políticas sobre aquilo
que deveria ou poderia ser narrado, pelo que é considerado como digno de nota
ou não: as tais condições de dizibilidade e visibilidade de Jacques Rancière
aqui outra vez. Neste movimento dialético em que o segundo plano e o primeiro
plano alternam suas posições sucessivamente e se contestam – numa genealogia
que se poderia rastrear a partir do neorrealismo italiano e que tem em Eduardo Coutinho a grande paternidade
por aqui – o filme se mostra como espaço que não admite a crença a priori no relevante, e parte então
para a narração do cotidiano – descontidianizado,
portanto –, para o diálogo trivial – destrivializado,
então – como força de existência e marca de acontecimento. Para o filme,
esta escolha imprime esteticamente a marca de uma obra que verá o diálogo como acontecimento, que preferirá a
câmera estática à direção ostensiva, que terá poucos cortes ou efeitos visuais,
que utilizará a trilha sonora não para tentar induzir emoções, mas como parte
mesma desta dialética de fundo e frente, e que, enfim, verá seus personagens
como fins e não como meios para aquilo que seria uma mensagem abstrata.
O cinema é
visto, então, como uma poderosa máquina de narratividade: composição de algo a
partir daquilo que não parecia sequer um objeto de fato. A existência do objeto já é, assim, um ato político.
II
É
agonizante assistir Hitler 3º Mundo
(1968). José Agrippino de Paula, um dos pais esquecidos do Tropicalismo,
carrega uma câmera angulosa – em constante movimento ou parada em posições que
distorcem aquilo que é filmado, à moda expressionista – atuações com gestos
marcados e repetições – que se remetem à dramaturgia de um Tadeusz Kantor – e
um encontro doloroso do simbólico com o cotidiano óbvio, resultando em um dos
filmes mais impactantes que se produziram em resposta à ditadura civil-militar
brasileira – por isso, aliás, nunca lançado comercialmente, como diversas
outras excelentes obras do período. A imagem de um jovem Jô Soares vestido de
gueixa a alimentar como porcos os habitantes de uma favela, sob uma câmera que
não se incomoda em se movimentar bruscamente e esbarrar nas pessoas, é algo que
não passará despercebido nem pelo mais cínico dos espectadores – e sim, se pode
discutir eticamente o sentido destas imagens, mas sua força é absolutamente
inegável.
Muitos
outros filmes deste período parecem querer trazer na forma algum tipo de
compulsão na imagem, que distorce deliberadamente o que seria narrado e desconforta
aquele que observa. Para além do paradigmático Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), cujo próprio nome é
sintomático do que aqui se expõe, seria possível citar Jardim de Guerra (Neville de Almeida, 1970) e suas intermináveis
cenas de tortura, O Jardim das Espumas (Luiz Rosemberg
Filho, 1970) na mesma linha, mas com baixos corporais nítidos, São Paulo Sociedade Anônima (Luís
Sérgio Person, 1965), com a metrópole e o capital em pleno movimento de (auto)destruição
e, enfim, até uma obra de um cineasta mais “tradicional” como Nelson Pereira dos
Santos no godardiano Quem é Beta?
(1972). É claro que a existência de diversos contraexemplos do mesmo período, é
bom dizer, mostra que não há aqui tentativa nenhuma de esgotar uma
interpretação sobre a fase mais produtiva do cinema brasileiro, mas mostrar que
há um tipo de tendência significativa nela.
E
é, em verdade, esta tendência ao transe, ao movimento, que parece unir –
mediada pela diferença formal, evidentemente – os cineastas do Cinema Novo e o
grupo da Belair que o tentou responder prontamente. Que se pense no Rio de
Janeiro pintado por, cada qual com suas cores, é claro, Carlos Diegues em A Grande Cidade (1966) e Rogério
Sganzerla em Copacabana Mon Amour
(1972): ambas as cidades são filmadas ao nível da rua e com câmera na mão,
ambas são evocadas deixando claro os limites da representação – a histórica
sequência de Antonio Pitanga que abre o primeiro, por exemplo, e a igualmente
histórica interpelação aos marinheiros estadunidenses no segundo –, ambas são
construídas como um local em que está ausente qualquer projeto progressista de
país, ambas, por fim, deslocam a qualquer custo os indivíduos – espectadores e
personagens – de sua condição de observadores passivos da realidade.
Tem-se
neste momento do cinema nacional, portanto, uma espécie de radicalização da
experimentação que a Nouvelle Vague propunha a partir do ímpeto de expor sua representação
à contingência do dia, das ruas, dos jornais. Talvez porque nossos dias, ruas,
jornais tragam consigo um grau de violência muito maior em todos os níveis da
vida psíquica e social.
O cinema, neste caso, é visto como uma
máquina de decomposição: as convenções, as doxas, os paradigmas conservadores
são internalizados e radicalizados pela forma, levados às últimas consequências.
1 e/ou 2
Resumiu-se
em dois esquemas bem genéricos (e não-totalizantes) duas tendências que
contrastam (e não opoem) dois momentos distintos (e não antagônicos) do cinema nacional. Na
contemporaneidade, vê-se a extrema narratividade que toma forma a partir da
dedicação à vida mínima e à construção; nos 1960 e 1970 vê-se o movimento que
parece dissolver a realidade e todos os viventes, que parece apontar, na melhor
das hipóteses, para a necessidade de se destruir o mundo tal como se conhece e,
na pior, para a constatação de que alguém já estava a realizar isso. Mas que se
pode tirar, enfim, desta aproximação?
Digamos,
então, que parece haver um pressuposto distinto para o que o cinema teria como
função em determinado contexto da realidade social. Nos anos 1960 e 1970 deste
nosso recorte, parece estar em jogo uma visão de que, em um mundo em que a
violência é radicalizada como forma de coesão social, o cinema deveria dar uma
resposta à altura, formal e tematicamente, transformando qualitativamente o
sentido sua experiência para que não perdesse seu lugar no mundo, não decaísse
em cinismo. O transe é o saldo formal desta resposta. Desta maneira, ecoando
Ismail Xavier, se poderia dizer que o diretor requisita para si um papel de
intérprete da realidade social como um
todo, e é esta realidade que ele colocará, mesmo que a partir de metáforas
e símbolos, dentro da obra: realidade violenta resulta em forma violenta.
Já na
leitura de certo cinema da contemporaneidade, a função da representação
cinematográfica parece estar um ponto diferente: ela é princípio de construção
ante aquilo que é visto como dissolução ou silenciamento no plano social. Se há
um Estado cuja única função, na educação, na cultura, na economia, é separar os
que possuem dos que não possuem – educação, cultura, dinheiro –, o cinema
também responde com a necessidade de se narrar alguma coisa sobre a parte dos
sem parte. A resposta à tentativa de instaurar o
nexo social pela racionalidade instrumental é, dialeticamente, a contestação de
que, caso esta realidade pretenda-se puramente instrumental, já não há racionalidade em jogo.
Noutra palavras, quando Juliana diz que seu namorado em Temporada joga handebol,
ou quando Neguim e Junim em A Vizinhança
do Tigre improvisam insultos sobre a base eletrônica de um celular velho,
a diferença em voga é a do dizer e do não-dizer, logo, do existir e do
não-existir como objeto/sujeito: qualquer forma de cálculo social que
desconsidere estas possibilidades latentes de existência é, no mínimo do mínimo,
puro cinismo.
A
graça é, portanto, que o contraste entre estas leituras distintas de momentos
históricos distintos traz consigo uma semelhança inevitável: há violência em
ambas as respostas, mesmo que elas se distanciem em diversos aspectos formais e
éticos. O transe está para a violência do Estado militar como a narratividade
está para a violência do Estado neoliberal. E estas duas respostas – que não
esgotam nenhuma das obras, mas constituem algumas linhas de força delas; e que
não são as únicas resultantes críticas delas ou de seu contexto, mas que foram
as que se escolheram aqui neste texto – trazem como intenção e consequência deslocamentos
na percepção sobre o que seria a função do cinema, ou do Estado, ou as inúmeras
combinações entre estas variáveis – e cabe à crítica dizer em quais filmes isso
se dá com mais força, mais amplitude, mais profundidade, com quais diferenças e
semelhanças, é evidente.
Ler
os movimentos de algo com a proporção do cinema brasileiro, portanto, deve
passar por um esforço de buscar o igual no diferente e o diferente no igual.
Como se viu – e este é o saldo destes apontamentos – qualquer leitura crítica
deve ter como pressuposto que há linhas de forças que unem e separam
simultaneamente obras de tempos históricos distintos ou aproximados, e que é
possível olhar essas obras em diversas chaves, com diferentes ganhos de
análise. No caso de nossa leitura, e aqui findo, parece estar
em jogo uma arte que atravessa os anos a observar nas condições sociais uma ampla
distância daquilo que idealmente deveria se dar; mas as resultantes disso,
individual ou historicamente, se distinguem justamente naquilo que se aproximam
– porque do diagnóstico são propostas respostas distintas – e se aproximam
naquilo que se distanciam – porque suas diferenças correspondem de certa forma
à necessidade de uma resposta. Transe e Narratividade (como a ditadura
civil-militar e a democracia representativa conservadora) são pares opostos e,
ao mesmo tempo, complementares.
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