Enfia no cu, e então Zézero
(Ozualdo Candeias, 1974) acaba. É esta a fala final da fada da mídia de
massas que aparece para um camponês como uma assombração, e que o convence a
ir para a cidade grande em busca dos sonhos de consumo estampados nas revistas
que traz consigo. Sonhos estes que o homem, ao cabo, consegue realizar não pelo
trabalho, mas pelo resultado da loteria esportiva, em que empregava quase todo
o salário de fome que recebia na construção civil. No entanto, como uma espécie
de Fausto da modernização conservadora, o preço que o camponês paga para ficar
rico é perder o nexo com sua família, que desaparece no nada enquanto ele tenta
fazer a vida em São Paulo. Diante da desolação da paisagem vazia que encontra
em seu retorno ao interior, surge outra vez a “fada” no mesmo lugar em que se
mostrou inicialmente. O camponês, desesperado pela perda de qualquer ligação
com o lugar de onde se origina, pergunta a ela que fazer com tanto dinheiro. Já
vimos sua contundente resposta, ainda mais enfática por ser repetida três vezes.
A boca de Isabel Antinópolis diz claramente em Zézero
No
começo do filme de Candeias, a câmera passeia pelas revistas de celebridades,
pelos jornais populares, pelos filmes Kodak que a fada traz como roupa; a
montagem transforma essas referências em colagens, as justapõe e explode sua
pretensa naturalidade também a partir do som: a fada faz de tudo pela sedução,
também nossa. Nas revistas, muito futebol, bens de consumo, estilo e moda, ilustrações
e humor, elementos comuns da vida urbana tecida a partir da publicidade. Mas
não é nada disso que convence o camponês a largar sua vida no campo. A chave de
leitura social proposta por Candeias é a do corpo, e são as modelos seminuas
que fascinarão o homem, e que ele buscará encontrar na cidade grande – inclusive
tendo comportamentos agressivos com mulheres que encontrará ali, em busca desta
posse. O corpo, ao ser trazido pelas mídias de massa e aí neutralizado de
qualquer potência de contestação, é visto como elemento de expropriação
pulsional – uma leitura até meio adorniana do capitalismo –, como o local para
o qual os desejos dos indivíduos de uma sociedade são canalizados por/como
desejos de consumo, simbolização que atrela a posse de algo à posse de si ou do
outro, sendo a recíproca verdadeira. E então entendemos a resposta que há naquela
frase que fecha o filme. Há ali um argumento sobre o nexo entre corpo e
linguagem dentro deste momento social, algo radicalizado pelo close na boca que
repete cu com uma ênfase destacada,
arredondando-se como... o seu referente. O dinheiro toma então o lugar do falo,
assume-se como objeto de desejo na ilusão de preencher alguma falta exterior
que, em verdade, é constitutiva ao indivíduo: diante daquele mundo então vazio
de sentido na passagem do camponês ao burguês, isso só pode resultar em
frustração.
Há
muito claro em Zézero, assim, um dos
principais eixos ou argumentos do cinema de margem (Boca do Lixo, por exemplo e
sobretudo) que emerge no Brasil como projeto estético próprio e resposta eficaz
aos sonhos da ditadura civil-militar: a saber, a centralização daquilo que é
tratado como resto não-simbolizável do processo autoritário de modernização conservadora
do país. Se os discursos hegemônicos são vazios, se as grandes narrativas são
puro cinismo diante da desintegração do horizonte de expectativas da vida
social, isso significa que o momento de
verdade do Brasil estará em tudo aquilo que é tratado como resto, pura
exterioridade, lixo do progresso
linear. Perder isso de vista é perder o sentido de obras como A Margem (Ozualdo Candeias, 1967), A Família do Barulho (Júlio Bressane,
1970), Copacabana Mon Amour (Rogério
Sganzerla, 1970), Mar de Rosas (Ana
Carolina, 1977) e O Vampiro da
Cinemateca (Jairo Ferreira, 1977): obras que apostam na decomposição da
narrativa linear como ferramenta para a expressão de uma negatividade que – e
este é o salto – não simplesmente se contrapõe ao projeto do
Brasil-país-do-futuro, mas lhe é inerente.
Júlio
Bressane talvez seja o cineasta que, ao longo de sua obra, mais radicalizou
esta ideia do resto como verdade da vida social. O Anjo Nasceu (1969), por exemplo, é basicamente a trajetória de
dois homens que invadem uma casa e torturam por um longo período, e de maneira
agoniante, as duas mulheres que ali habitavam, até assassiná-las. Não há ali
nenhuma perspectiva de explicar as motivações dos indivíduos, de fazer uma
crítica sociológica ao sistema que pariu aqueles sujeitos, ou mesmo à burguesia
que se permite ter casas enormes como aquela: o filme é pura negatividade da
ordem social, expressa sobretudo na sequência em que o personagem de Hugo
Carvana assiste ao pouso na Lua na televisão – mostrado no filme ao longo de
quase 4 minutos – e, em uma única frase, resume suas observações sobre o
assunto: tremendo otário.
Em A Família do Barulho, em que a crise do
petróleo se manifesta apenas como a possibilidade cafetinar uma odalisca para
ganhar algum dinheiro, tem-se a partir da quebra radical da narrativa, da
constante dobra do filme sobre si mesmo como representação, a negação de
qualquer possibilidade de se agenciar um discurso coerente – como o do Cinema
Novo – sobre a realidade brasileira, mesmo que criticando-a. E nisso
entende-se, enfim, o sentido da palavra família
colocado em jogo pelo título-pastiche da obra – apenas alguns anos após a
famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade – que surge representando
três indivíduos que mantém relações corporais ostensivas entre si, que se
ofendem e se agridem, que cometem delitos e se prostituem. A mesma palavra surge
a negar seu próprio sentido corrente. Pois, se família vinha sendo acima de
tudo um nexo de cunho moralizante, abstrato e conservador naquele momento,
Bressane coloca o baixo-corporal em cena para desnaturalizar esta relação, e
repensar suas possibilidades – como fica claro na apoteótica sequência final do
filme.
Baixos
corporais, violência não-justificada, insultos, lixo, paisagens urbanas
caóticas e pobres a se mimetizar por quebra de narrativa, metalinguagem,
interpelação direta ao espectador, câmera em movimento, mistura incessante de
gêneros, trilha sonora caótica, letreiros e subtítulos excessivos, narrativas
sem moral possível. Por mais antinatural que possa parecer, este nicho do
cinema brasileiro que aposta na negação de qualquer projeto de sociedade é, em
verdade, um grande projeto estético – com seus limites históricos e
possibilidade específicas, é claro, como qualquer outro. Está na pura negatividade
a crença na latência de algo na realidade social que não coincide com os
discursos que se fazem sobre ela: é dela que emerge este mundo, e não do nada:
ela o produziu, como produziu a seleção de 70 ou o nacionalismo entreguista. Se
a repetição exaustiva do marginal ou
do maldito simplesmente esvaziou
essas expressões de sentido – assim como fez com aquela seja marginal, seja herói que segue-se estampando por aí em plena
vigência das demandas da democracia representativa –, é diante da crença
generalizada na teleologia de um discurso positivista que pode-se, de fato,
como nos anos 1970, falar da margem
como um projeto estético de alcance em sua negatividade.
O
próprio Júlio Bressane no filme-ensaio Viola
Chinesa: meu encontro com o cinema brasileiro (1975) parece aclarar um
pouco este ponto e sua ligação com as imagens dos baixos-corporais colocados em
cena neste projeto. Em seu diálogo com Grande Otelo – esta figura enorme que
não cansa de calar dicotomias apressadas entre o popular e o intelectual –, Bressane
afirma que não se pode confundir é
erotismo com essa rede de onanismo picareta que vem constituindo a mente
cinematográfica contemporânea. Este ponto é crucial, e nos faz retornar ao
sentido do corpo em jogo em Zézero.
Não há negatividade-em-si em nenhum objeto: é necessário construí-la como
discurso, ou a imagem se tornará objeto e positividade, será apropriada pelo
discurso vigente. O corpo pode ser, assim, o corpo da chanchada: o gênero que,
e veja só que sintomático, era fomentado pela ditadura, inclusive resultando
nesse período em grande parte das maiores bilheterias da história do cinema
nacional, como em Bem Dotado, o Homem de
Itu (José Miziara, 1979), Como é Boa
Nossa Empregada (Victor di Mello, 1973) ou Coisas Eróticas (Raffaele Rossi, 1982). Neste caso, o corpo é onanismo picareta, porque representado
como objeto passivo de uma sexualidade heteronormativa que se expressa de
maneira complacente, colocando o espectador como voyeur do óbvio, confirmando
os termos do nexo social conservador – é isso que está em jogo criticamente em Zézero. Mas o corpo como erotismo, algo distinto disso, se traduz
como desafio e resposta, potência de destituição da ordem, pulsão de desmaterialização dos limites da experiência social. O cinema como erotismo é
aquele que coloca o corpo – e, portanto, a sociedade – em situações que
redimensionam sua imagem, alienam as impressões cristalizadas sobre si e se
dobram sobre as experiências sociais como possibilidade.
Por
isso, muito longe ser simplesmente a constatação de uma aporia, este momento do
cinema como boca do lixo traz em si um projeto de, pasme, dialética: encontrar
no si-mesmo as condições para ser algo distinto. Não há contestação pela
contestação. O lixo é tão produto da sociedade capitalista quanto os edifícios
espelhados e os automóveis conversíveis, e cada qual revela algo sobre o estado desta
sociedade, seu horizonte de expectativas, seu espaço de experiência. O corpo –
e nisto está também a aposta de filmes contemporâneos como Febre do Rato (Cláudio Assis, 2012), Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) ou Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), evidentemente em novos termos
e lançando luz a novos contextos – sempre trará consigo um a mais não simbolizado. Isto não significa, de forma alguma, abrir
mão da representação pontual como espaço de experiência coletiva. Significa, sim, que qualquer
objeto pode ser tensionado ao seu limite, desnaturalizado, centralizado a
partir de qualquer ponto: toda forma tem seu avesso, todo ato de linguagem é
incompleto e, por isso, produtivo: só se veem filmes de 50 anos atrás ou livros
de 1800 porque há neles algo que varia e que deixa ou torna a fazer sentido.
A
distância do resto ao essencial é unicamente uma representação que dê conta de
inverter o sentido em jogo. Por isso, diante daqueles que defendem que o cinema
deve dizer aquilo que “o povo” quer ouvir, diante
da defesa do entretenimento como categoria crítica, ou diante do discurso
corrente que associa a arte ao belo – sem pensar que a beleza, como a educação,
é uma categoria social – me parece que a grande lição que certo veio submerso
do cinema brasileiro tem deixado para a posteridade é um produtivo, dialético e
sonoro enfia no cu.
Comentários
Postar um comentário