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É sem dúvidas um risco escolher, dentre todos os
recortes críticos disponíveis, escrever neste espaço sobre algo que se chama Cinema nacional. Um risco porque esta
expressão traz consigo camadas e camadas discussões muitas vezes mal-elaboradas
– quando ao menos bem intencionadas – ou puramente preconceituosas – quando
perdidas na limitação ideológica – que negociam e renegociam o valor desta expressão
diariamente. O grande problema destes debates tende a ser, e tem sido, a
necessidade de aplicar um juízo absolutamente positivo ou negativo a um
conceito que seria aparentemente simples, conceito este tomado como um objeto
estático e dado a priori. Creio que
aqui se iniciam os nossos reais problemas, e por isso mesmo é onde surge o
interesse de criar e frequentar este espaço.
Um
exemplo então do que estou a dizer. A indicação de Democracia em Vertigem
(Petra Costa, 2019) ao Oscar de Melhor Documentário movimentou uma imensa
máquina ideológica que de lado a lado insistiu por valorizar o filme unicamente
por ele ser brasileiro (ou por ter determinado discurso político), ou
desvalorizá-lo pelos mesmos motivos. Poucas considerações foram vistas sobre o
discurso, as imagens, o tipo de produção, a eficácia ou não da narração (que,
creio, formam uma obra mediana e inferior um documentário de recorte similar
como O Processo (Maria Ramos, 2018),
mas isso é outra história). O filme brasileiro raramente tem direito de ser uma
coisa além de brasileiro, porque a categoria Cinema nacional tem sido jogada da crítica estética – que lê obras
a partir de suas condições de produção – para a sociologia da arte – que
observa apenas as condições de produção – de maneira irresponsável ou cínica, a
partir de interesses em tudo alheios aos próprios filmes. O nacional parece ser o substantivo, e o cinema o adjetivo.
Por
isso, neste primeiro texto que tenho o prazer de escrever aqui, gostaria de sugerir
uma caracterização negativa e positiva do que, neste espaço, será considerado Cinema nacional, explicando assim o
recorte do que se fará por estas bandas.
Sendo assim, o
Cinema nacional não será:
-Uma categoria
já dada. O fato de um filme
ser feito no Brasil o faz automaticamente um filme brasileiro? Um filme feito
por um estrangeiro no Brasil – cite-se aqui Hector Babenco, Marcel Camus ou Ruy
Guerra – pode ser um filme nacional? Um filme oriundo de um cineasta indígena e
não-falado em português, como Ma Ê Dami
Xina (Zezinho Yube, 2008) é um filme nacional? Note-se como esta categoria
está muito longe de ser facilmente demarcável, estando em jogo próprio conceito
de Estado como unificador da experiência individual e da vida social. Cada obra
dará as medidas daquilo que diz.
-Uma
categoria excludente. Porque um filme brasileiro pode ser também
latinoamericano, pode se inserir numa tradição ampla de representação da
mulher, pode ser um drama ou uma comédia como tantas outras feitas por aí. Uma
obra não precisa ou deve se balizar em um único ponto, sobretudo se este lugar
é uma determinação em geral tão castradora como o Cinema nacional.
-Um produto
de intenção. Parece estúpido dizer, mas se um grupo de filipinos se reunir
no Congo para fazer um filme em inglês com produção de espanhóis, este filme
não será brasileiro nem que o queiram. Ficará depois mais claro o porquê de se
dizer isto desta forma, sobretudo na consideração sobre o conceito material.
-Uma categoria
crítica. Caso contrário, se
poderia falar de filmes mais brasileiros ou “melhor brasileiros” que outros: o
absurdo do enunciado é o bastante.
-Uma categoria
puramente estética. Já que não se
pode mapear em uma obra, em suas falas, personagens ou fotografia, o que seria seu
“teor de brasilidade”. E já note-se o juízo de classe fortíssimo que há em
todas as apologias da brasilidade que se encontram por aí em rótulos como MPB
ou Literatura Brasileira.
-Uma categoria
puramente extraestética. Pois as
condições de produção de uma obra não são o mesmo que a obra, nem a determinam
em todos os seus aspectos. Nisto entraríamos em todos os dilemas sobre
representatividade e as ligações muito difíceis entre ganhos políticos e ganhos
estéticos: um filme sobre as lutas de grupos LGBTQI+, por exemplo, pode ter uma
forma completamente conservadora, uma narrativa tradicional, um tom nostálgico
e, simultaneamente, ser importante para a sociedade como campo de debate. As
coisas não se determinam de lado a lado.
Como
fica claro, tomaremos Cinema nacional
por um operador em constante negociação, dependente de diversos níveis de
interpretação, sendo assim algo relacional. Assim, passemos à definição
positiva da coisa. Cinema nacional será:
-Um contexto em
funcionamento em uma obra. E uma obra é
uma resultante de inúmeros contextos que se cruzam e redefinem constantemente
seu valor. Um vaso em uma cena de um filme pode se remeter a um deus grego, a
um poema parnasiano, ao momento em que, em A
Cor da Romã (Sergei Parajanov, 1968), o poeta lava seus pés; este vaso,
além disso, pode ser representado com grandiosidade clássica, como afresco
diante do vazio da vida burguesa, como parte de uma natureza morta. O fato de
este vaso eventualmente estar em um filme feito no Brasil não determina o que
ele pode significar, mas é um grau a mais do infinito processo de construção da
significação de algo.
-Uma categoria
política. Em um momento de
desmonte do sistema público de fomento ao cinema no Brasil, assim como de
enorme dificuldade de manutenção de todos os seus mecanismos de difusão e
reprodução – vide o recente fechamento do Cinearte
em São Paulo e a necessidade de aportes de mecenas de bancos privados para
viabilização de alguns destes espaços – o operador Cinema nacional passa a ser cada vez mais produtivo e efetivo. Está
em jogo o local de existência de um mercado e de uma historicidade própria, e
isto não é pouca coisa.
-Uma categoria
material. Os créditos de Bacurau (Juliano Dornelles e Kléber
Mendonça Filho, 2018) deixam claro: um filme gera empregos e impacta a vida das
pessoas que o produzem e consomem. Isto significa, portanto: um filme é um
objeto da realidade, que atua na realidade. Para o bem ou para mal, esta
realidade ainda se dá imediatamente dentro do espaço de um Estado nacional, que
compartilha condições materiais entre grupos de indivíduos, a) podendo
viabilizar ou inviabilizar a existência de um mercado – lembre-se de que, como
conta Paulo Emílio Salles Gomes, o cinema brasileiro sofreu em seu percurso pela
falta de luz elétrica, de pessoas habilitadas, de aparato técnico, de filme
fotográfico, de estúdios, de salas de reprodução, de uma cinemateca, etc, e
lembre-se por contraste como outros cinemas não apresentam este tipo de
limitação material que aqui segue condicionando o plano estético e suas
pretensões, b) sendo um espaço de partilha de experiências comuns, referências
históricas, modos de ser e dizer, formas de vida. O cinema é mais um espaço em
que se dá o imprescindível jogo democrático.
Sendo assim, quando falarmos de um Cinema nacional falaremos de termos que
nos levarão a um realismo especulativo, isto é, a uma tentativa de tatear
relações entre a objetividade de uma obra e a objetividade de suas condições de
produção. Neste espaço de relação estará uma visão do nacional que não seja de
subtração, em que se retirando aquilo pretensamente “exterior” se chegaria a
uma pureza brasileira intrínseca, como criticava Roberto Schwarz, mas de
multiplicação e divisão, observando como este operador pode estar em voga de
diferentes maneiras e lançando a diversos aspectos de filmes distintos, que por
sua vez lançarão luz também ao conceito, sendo nenhuma das relações exclusiva.
(Pronto, este é o palavrório necessário para
começar. Espero que ele não tenha escondido o fato de este texto, assim como os
que se sucederão, ser simplesmente uma carta de amor.)
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