-
-O
perdi numa enchente, não soube reencontrá-lo. Um peso a menos. A verdade é que as
pessoas só os tinham para tentar pertencer de alguma forma ao mundo, para caber
em ouvidos, em códigos, numa fração de um papel. Para se tornar vozes
apreensíveis, resumos de si, conceitos: coisas que a essa altura já não mais me
servem para nada, porque não me alimentam. Vamos parar de caminhar um instante,
por favor, isso já perdeu sua razão de ser.
-
-Minha
mãe é a mãe do nada. Meu pai também é quieto. Você entende o que isso quer
dizer? Há tanto eu não falo uma única palavra, há tanto não se fala uma única
palavra, as coisas que eu vejo não me dizem nada sobre o visto. Mas ainda posso
esbarrar nelas. A realidade é indiferente a tudo que se nega. Por isso digo que
é inútil o esforço de tentar entender. Eu apenas desvio. Finalmente meu corpo
se tornou parte de mim. Cada silêncio era antes um ruído desalentador; mas agora
o raio que arrebenta o chão só serve para calar as pedras no instante seguinte.
Você entende onde isso pode chegar?
-
-Você
não entende.
-
-
Nenhum e, portanto, milhares. Hipóteses, eles são. Se multiplicam no nada, se
fundem em si, se diluem no vento, se reproduzem no outro, se perdem. Como
probabilidades. E por eles tenho um amor imenso, por tudo que podem engendrar,
pelos campos que podem correr sem se arriscar a cair, a se perder, a pisar uma
mina e perder uma perna. Me acalma ao lado deles poder ver o mundo, daqui de
cima, desta noite, deste agora, sabendo que não é mais preciso descer, sabendo
que algo finda neste ponto enfim.
-
-Herdar
os fatos sem reticências. Poder chamá-los de história sem a vileza de
enclausurar um homem vivo nesta palavra. E poder conhecer suas beiras, suas
quinas, seus lhanos. Ter a capa do livro em mãos. E então furá-la, dobrá-la,
marcar um ritmo nela. Por saber que ela sempre se restituirá em seguida. Que
mesmo quando as aves comerem meus olhos e os insetos se fartarem com os restos
destas páginas, que jamais se duvidará do fim e, portanto, do trajeto: vivem todos
também neste ato de findar. Saber que o sentido se deu não só sob as palavras,
mas sobretudo sob as luzes dos dias.
-
-Sustentar
cada fato sem reticências, o veio de cada linha seca que cinge, perfura e se costura
à minha carne ainda quente. E mesmo que eu corra os restos do mundo, e mesmo
que eu me esconda de mim sob um rio, saber que isso tudo foi e é inevitável.
Conhecer o peso de cada palavra, de cada letra, de cada linha, escrita ou não
escrita, por as carregar, e as apoiar em meu corpo, em mim. Colidir o rosto com
a capa, ter a mão coberta de tinta, e não escrever nada além de ponto de
exclamação quando encontrar o final.
-
-São
meus irmãos.
-
-Não
todos, cada um.
-
-Vendedores
de sapatos, escritores ítalo-argentinos, pintores de infernos, corretores de
imóveis, cozinheiros especializados em frutos do mar, agentes funerários,
professores de nível médio, escultores barrocos, pilotos de aeronaves,
jornalistas e titeristas, puxadores de escola de samba, comediantes, padres e
clérigos, tesoureiros do partido comunista.
-
-No que ainda sei sobre amar.
-
-Não
a todos, a cada um.
-
-Como
posso pensar que estou só se ao meu redor há pradarias, edifícios colossais,
piscinas olímpicas, monumentos cobertos de mato? Se a cada volta breve ao redor
das cidades, posso ver várias formas de tudo o que já fomos ou do que
poderíamos ter sido? Se hoje posso, sem pudores, me amar? Olhando essas roupas
caídas no chão, vazias de mim, eu desconheço o estar só. E é chegado um momento
em que só se pode estar consigo. Um consigo que carrega em si todos os outros, sempre
prováveis, em cada instante em que cada possível nome se realiza.
-
-Não o faziam em praça pública.
-
-Porque
houve um momento, entre a busca da uma ordem cósmica num tigre e a certeza de
que a prece não bastaria, em que tiveram que baixar os olhos. Porque preferiram
se agarrar aos seus erros, mesmo que a maior chuva sempre se dobre à sua certeza.
Não compreenderam isso. Não souberam que era necessário ceder. Mesmo caído, o
fruto cumpre seu motivo. Mas isso é proverbial demais.
-
-Ele
morrerá comigo, ou nascerá assim que eu morrer.
-
-De
quando se envolviam em jogos em que precisavam mentir para vencer. E então
faziam um pacto silente, um trato em que falar a verdade significava mentir, e
mentir se tornava a linha do certo: uma prece pagã, sussurrada, consentida.
Também de poder dobrar lençóis, é verdade.
-
-As coisas estão naquilo que são.
-
-Entrar
em uma casa e encontrar a mesa posta: seis facas, seis garfos, três pratos,
duas colheres. Saber que depois de mim a decisão entre o roxo e o azul deixará
de fazer sentido. Saber que, na verdade, todo o trabalho de tentar pôr nomes a
tudo foi em vão. Foi luminosamente em vão.
-
-É
o fim de berros irrompidos entre dois braços e duas pernas, sim. É o fim das
tentativas impossíveis dos poemas, sim. É o fim da tinta gasta em delimitar o
começo e o fim da verdade, sim. Todo o resto ressoa – daqui eu escuto – com os
mesmos timbres duvidosos do princípio.
-
-Como um cão dormindo, é o fim.
-
-E
é o fim também a casa onde durmo. Um sorriso tímido, inexplicável, que
pressinto em meu rosto agora. E as coisas nos conduzindo amorosamente ao nada.
Apenas terminando de nos conduzir.
-
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