O popular é uma
categoria erudita.
Aproveitando
o fato de este que vos escreve não é profundo entendedor de nenhum dos assuntos
a que se dedica – e, portanto, não tem uma reputação a comprometer –, a tentativa
deste texto será a de inocentar um réu que insistentemente é julgado à revelia
pelo grosso da opinião comum: me refiro aqui à acusação de que o cinema brasileiro nunca foi popular,
talvez por escolha ou talvez por incapacidade, o que levaria então à constatação
da preferência do público nacional pelos filmes oriundos de grandes mercados
estrangeiros. Em suma, nota-se desde já que esta é uma questão que atravessa
critérios materiais, estéticos e éticos, o que dá nota de sua incontornável
complexidade – proporcional à necessidade de se inocentar tão logo possível
este réu tão sofrido.
Para começar
esta espinhosa discussão, é necessário especular o que pode significar o tal popular. Pode-se pensar que ele seja uma
questão de tema – o amor é mais popular que a bomba atômica? –, de forma – a ação
é mais popular que o suspense? – de conteúdo moral – punir o mal faz mais
sucesso do que deixá-lo livre enquanto sobe o letreiro de Fim?. Pode-se pensar também que isso seja uma questão de princípios
– há coisas propriamente populares que devem ser alcançadas pela obra? – ou de
fins – a bilheteria de um filme mostra como ele conseguiu ser popular?.
Sociologicamente, seria possível imaginar que o popular está associado às
classes baixas – a um falar, um modo de viver e de sentir as coisas –, enquanto
algo como o erudito ou cult significaria
uma imposição de um elemento estranho ao núcleo do comum?
A conclusão
inicial a que se chega é: em todas suas possibilidades, popular parece estar em primeiro lugar associado a ingênuo, isto é, a formas de mundo não
refletidas pelas pessoas que, massivamente, as reproduzem. Desta maneira, só
existem obras populares oriundas de dois movimentos: ou da irreflexão de quem a
cria – isto é, a pessoa faz e só poderia fazer aquilo que conhece e vive – ou da
repetição consciente de um modelo do popular, buscando atingir um reconhecimento do povo na
obra (note que só pode pensar de ambas as maneiras aquele que se enxerga como não-ingênuo, isto
é, superior ou conhecedor pleno do que observa). Neste esquema, é evidente, não pode haver
nenhuma saída politicamente propositiva, já que o popular sempre será
coincidente a si mesmo, pois nasceu do nada e está fadado a acabar da forma
como começou; por outro lado, aquele que é exterior ao popular permanecerá ad eternum em sua posição esclarecida. O mundo é imóvel.
Para notarmos esses mecanismos em funcionamento, pensemos,
por exemplo, como uma figura como Luiz Gonzaga é comumente associada à imagem
de um Nordeste puro, místico e enraizado em suas tradições (forma culturais previsíveis) – algo debatido
recentemente por Bacurau (Kléber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles, 2019) – sem que se tome nota de como o maior mérito individual da carreira do músico está no fato de ele ter criado, com enorme cuidado, uma estética própria de Nordeste e,
então, tê-la popularizado incessantemente (algo que torna sua participação em Sem essa, Aranha, de Rogério Sganzerla (1970), tão significativa, aliás).
Pensemos, ainda no campo da música, como qualquer crítica à qualidade de
gêneros considerados populares é rebatida prontamente com a acusação de
elitismo ou de incompreensão daquilo que seria a verdade verdadeira do Brasil –
o que, em um movimento crítico semelhante ao acusado sobre Gonzaga, ignora que algo como o
sertanejo universitário é cuidadosamente moldado em discurso e estética por
produtores que passam muito longe da própria ingenuidade atribuída ao
público-alvo de suas criações, que seriam em
si magicamente populares.
Está
claro que a categoria não se sustenta. Se ela é sociológica, ela é, na melhor
das hipóteses, elitista – já que precisa avaliar um outro homogêneo a partir de
um eu que não faz parte do que está a avaliar. Se ela é temática ou formal, ela
aperta as mãos da teoria dos gêneros de Aristóteles e assume que se baseia numa
visão de 3 milênios de idade para captar
a benevolência do outro no século XXI (aliás, associar comédia à ralé, como
a Globo Filmes insiste em fazer, é algo assustadoramente aristotélico). Mas,
pode-se argumentar, e neste ponto a sentença sobre o cinema nacional é
decretada, que o popular é uma categoria do real, isto é, pode ser medida por
réguas quantitativas como reações, ingressos vendidos ou números de plays:
neste caso não haveria argumentação possível, pois se está diante algo que deve
ser apenas constatado: e pobre daquilo que está fadado a ser, para sempre,
impopular. Aqui começam os maiores problemas a se lidar.
Os
filmes brasileiros de maior audiência nos últimos anos foram quase em
totalidade comédias de costumes, que retratavam majoritariamente a ascensão de
personagens de classes baixas às classes altas (ou ao menos de um lugar de
inferioridade a um de superioridade): De
Pernas para o Ar 1, 2 e 3, O
Candidato Honesto, Minha Mãe é uma
Peça 1, 2 e 3, Até que a Sorte nos
Separe 1, 2 e 3, Suburbano Sortudo,
Vai que Cola. Estes filmes são
resultado de um método específico de produção que envolve insistentes testes sobre
a reação de espectadores à obra antes que ela entre em circulação, algo avaliado
a partir de critérios quantitativos disponibilizados por empresas
especializadas nisso. Roberto Santucci é, no Brasil, tanto o mestre destas
comédias – seu trabalho de direção ou co-direção está na maioria delas – quanto
o maior aperfeiçoador do método, algo amplamente descrito em Ao Gosto do
Freguês, brilhante texto de Luiza Miguez para a Revista Piauí, infelizmente
fechado para assinantes (https://piaui.folha.uol.com.br/materia/ao-gosto-do-fregues/). Com o sucesso reiterado de seus filmes, Santucci fala
como se tivesse chegado ao grau-zero do popular, já que insistentemente provado
pelos números tanto de bilheteria quanto de avaliação. É como se houvesse, enfim, um modelo perfeito de aproximação – a palavra é importante – da obra ao que é em-si
popular, e deve ser alcançado para que se obtenha retorno financeiro
satisfatório.
Os
números estão aí – assim como os números que colocam nas 20 maiores bilheterias
da história cinema brasileiro 13 comédias, 2 filmes religiosos e 2 filmes
pretensamente eróticos. Uma voz ao fundo diz que é disso que o povo gosta e que
se está procurando pelo-em-ovo ao ver nisso um
problema, típico daqueles que querem que o povo veja Godard depois de trabalhar
44 horas semanais e ter que negociar com o patrão. E aqui vem a maior dificuldade
de reverter a sentença: o teor de constatação que o argumento quantitativo do
popular traz consigo. O popular é um dado a
priori: é assim porque é assim, ora,
veja os dados.
Mas notemos,
então, que a categoria do popular só permanece em circulação para servir aos
interesses de uma elite que lucra (muito) com ela, e aqui nossa dialética fica
interessante. A edificação da homogeneidade do gosto é aquilo que dá vazão a
nichos de mercado, que precisam de uma demanda para existirem como tais, e que
só se sustentam por isso. Assumir o popular como um a priori é, assim, trocar a consequência pela causa: talvez Vingadores seja mais visto do que Godard
no Brasil não por ser em si mais
popular nem por trazer para as telas exatamente aquilo que o povo gosta, mas sim por passar nos cinemas de todo o país – em muitas cidades, com
exclusividade –, por encontrar respaldo nos valores e estéticas veiculados nas
mídias de massa, por dar vazão aos padrões de gozo e consumo que circulam nesta
sociedade, por haver ferramentas de análise difundidas sobre o que define a
qualidade destas obras – já parou para pensar que muitas pessoas dizem que não
gostam de poesia, por exemplo, por não saber quais as ferramentas necessárias para
se ler um poema e então dizer que ele é bom?. O mais interessante desta história é que o próprio filme, no
fim das contas, irá reiterar quase tudo o que tem como pressuposto sobre o que diz e como diz: o popular se constrói a cada obra popular. Sendo assim, considerar nosso conceito como um a
priori desconsidera a materialidade do gosto como um processo, e a assume
com um dado: a constatação cômoda daqueles que dizem que a sociedade é assim
porque é assim, e que a providência divina ou a mão invisível do mercado – é a
mesma coisa – irão regular as desigualdades sociais com a naturalidade com que
elas se formaram.
Devemos
nos perguntar, se quisermos jogar com a categoria que estamos negando, em que
medida houve realmente alguma chance de nosso cinema ter sido popular para além
das comédias da Globo. Se houve em algum momento um projeto que
visasse a autonomia de análise e fruição de uma obra, se na época de ouro do
cinema nacional a ditadura civil-militar permitiu boa difusão para os filmes de
Nelson Pereira dos Santos ou algum financiamento para os de Júlio Bressane, se há hoje alguma garantia para alguém que rode um
filme de que haverá dinheiro para terminá-lo. Há muitas determinações e
sobredeterminações em jogo antes da constatação do as coisas são como são: principalmente a hipótese intragável do como as
coisas poderiam ser ou ter sido. Calar sobre esta hipótese é fazer uma partilha arbitrária
do sensível entre os eruditos – nós que compreendemos e conseguimos reproduzir para vender –
e os ingênuos – que simplesmente consomem sem sequer perceber o que consomem: o popular
é uma categoria erudita, e só existe em função do lugar que o molda e define
seus termos.
Dizer
que qualquer coisa pode vir a ser popular – ou, por outro lado, que qualquer
coisa pode deixar de ser popular – é afirmar que as bases materiais da
sociedade podem ser alteradas, porque não há ninguém no mundo cujos termos de
vida – gostos, amores, desejos, valores éticos e morais – já estejam dados definitivamente
ou sejam restritos a uma identidade que defina a maneira como se enxerga o
mundo. Em outras palavras, significa dizer que nada pertence a ninguém,
justamente porque tudo pode pertencer a todos, e deixar de pertencer novamente. Com isso, acaba-se com o povo como uma categoria predicativa, em que se define a partir de critérios arbitrários quem ou o que está do lado de dentro ou do lado de fora: foi essa a discussão de Terra em Transe, há tantos anos, afinal.
Por
isso, revertendo o diagnóstico mais corrente, notar como o cinema brasileiro
(quase) sempre apresentou trajetórias autorais longínquas (Luiz
Rosemberg Filho ou Ana Carolina, por exemplo), que lutaram contra todos os
percalços materiais possíveis para se desenharem, significa não que este cinema
tenha sido resistente à popularidade ou aos termos do que deveria fazer para
ser compreensível para as massas, mas
sim que tenha acreditado que as condições materiais do Brasil, suas pessoas e
seu ambiente social tivessem o direito de se manifestar em formas distintas daquelas
consagradas pelo mercado como populares: justamente porque o popular é uma
categoria falsa, que não dá conta da multiplicidade de sensibilidades e
experiências que existem por aqui. É como já dito sobre Ladrões de Cinema (Fernando Coni Campos, 1977) anteriormente:
a enorme grandeza do cinema nacional está em olhar para seus limites e
enunciá-los, para então vê-los como possibilidades futuras. O popular, por
outro lado, precisa olhar para os limites apenas como impossibilidades, e então
silenciar sobre elas, já que é ali que seu conceito deixa de funcionar.
O cinema
brasileiro não pode ser culpado nem por suas condições materiais – pelos
monopólios estrangeiros das salas de exibição com facilidades enormes de
financiamento, pelo domínio de distribuidoras atreladas a elas, por esse
sistema que impede a viabilidade de um mercado interno autônomo, pelo Estado
que se nega a assegurá-lo como ocorre em países como a Coréia com os resultados
que temos visto – nem por seus produtos que distorcem o jogo da repetição do
mesmo, repropondo-o. Os culpados são aqueles que precisam uma imagem estática de Brasil para,
então, lutar todos os dias para ter o monopólio sobre ela. Novamente, o que
está em jogo é a possibilidade infinita da dissidência, a desnaturalização do
dado como o único possível. Muito longe de classificar como mero lixo uma
comédia da Globo – o erudito é também um jogo que parte de um a priori e de um lado de fora –, superar o popular é poder viver em condições para que todos possam escolher entre
produtos distintos e histórias distintas, e notar neles suas diferenças, suas particularidades, sua
relação com outros produtos, etc.
Só haverá democrático
quando não houver mais popular, em suma.
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