O
assombro até hoje causado por figuras como Herberto Helder talvez seja um
sintoma de algo que os amigos-da-Literatura, em pleno 2020, ainda não queiram
admitir: não há fixidez possível no reino das palavras. Em outros termos,
a radicalidade daquele projeto artístico – estranhamente disperso entre as
ideias de formalismo e de subjetivismo, outro sintoma do que aqui se diz – e sua
absoluta inquietude – sempre traduzida na infinita reelaboração do já-feito-sempre-por-fazer
– dão nota de uma dolorosa consciência de que o objeto artístico, por debaixo
de sua aura, talvez seja mera questão de contingência ou vontade. Algo que comprometeria
a crença ilustrada de que no Livro (mais um objeto simbólico do que um portador
de sentido) estaria o núcleo duro de nossas aspirações morais como sociedade.
Isto
significa, sejamos mínimos, que a literatura precisa de uma boa dose de neurose
obsessiva para se manter, ainda hoje, como a instituição do século XIX que se
funda(va) na causalidade direta e na intencionalidade do autor unívoco para
considerar uma obra como acontecimento do passado que ecoaria em direção ao
presente. Na prática, isto significa subtrair toda a experiência ativa e
produtiva de recepção, e toda a deriva da linguagem, em prol de um ordenamento
óbvio e incontornável do objeto: só pode considerar completa uma obra aquele que considera completa uma sociedade, uma cidade ou um momento histórico. Note-se como nisto
estaria uma visão análoga da história como processo ascendente, regido por
acontecimentos finitos e ordenados anteriormente ao discurso (e é a isso que
Meschonnic se referia ao afirmar que toda teoria da linguagem deve ser uma
teoria da história E do sujeito).
Dizendo
isso de outra maneira, acabar é
contraintuitivo porque a linguagem nunca esgota a si mesma no tempo ou no
espaço, todos nós o sabemos. Paul Valèry inclusive, quando há muitos anos incorporou
o acaso como componente imprescindível na passagem da obra ao espírito – e aí
mais um autor que, vejam só, teve toda uma fortuna crítica a arremessá-lo do
formalismo ao subjetivismo: questionado, por exemplo, sobre como acabou o
processo de composição de Cemitério
Marinho, Valèry afirmou que foi a demanda do editor que o havia obrigado a
findar. Não há final interno ao texto (pelo mesmo motivo que não há final
interno ao relato de um indivíduo, ao ato de jogar conversa fora, afinal).
O
absurdo não deveria residir no fato de Herberto Helder ou Borges alterarem constantemente
os textos de suas respectivas obras tanto quando fosse possível. O absurdo, me
parece, está na própria ideia de que essas práticas sejam absurdas, desconformes
a qualquer ideia de literatura. Mas se o sentido é um processo ou um efeito de
superfície (talvez essa afirmação não seja tão trivial para alguns), nada
parece mais natural do que interiorizá-lo no ato de composição da obra – quando
o teatro ou as artes plásticas o fizeram, não nos doemos tanto, ora. A solução
de alguns escritores, ao que parece, é apenas tentar reivindicar para si este
direito à deriva, o que nada interfere – e isso também é importante – na outra deriva
que o texto cumprirá para além das determinações e esforços de seu autor.
A
partir das intervenções de Walter Benjamin, no começo do século passado, acerca
da nova era da reprodutibilidade técnica da obra de arte – e ali está o cinema
em questão –, as discussões sobre o futuro do sentido da arte nas sociedades de
massa foram gradativamente atingidas por um ponto importante: só poderia haver
um marco do desdobramento contextual do sentido – a letra órfã da sociedade
moderna – se até então o sentido tivesse tido um local determinado para si, isto
é, se no contexto pré-moderno fosse inquestionável a viabilidade da
hermenêutica ou da mimese para além dos projetos de poder que impuseram este
tipo de leitura. Escrever uma história da retórica, por exemplo, deveria ser
também escrever uma contra-história da retórica, isto é, observar os limites destes
macromodelos de mundo diante da multiplicidade infinita de suas realizações
particulares. Elas eram, afinal, linguagem. E como linguagem permanecem sendo.
(Teoria da história e do sujeito para teoria da linguagem, outra vez).
Note-se,
portanto, como qualquer defesa da literatura como instituição é uma corda-bamba
muito frouxa. Está claro que há práticas, modelos, uma recepção particular em
jogo. Está claro que há uma historicidade particular também. E no entanto, a
matéria que vive na sólida instituição sempre será a mais hesitante, viscosa e
arredia possível: uma joga contra a outra. Crer que a literatura é a história
das obras realizadas é descrer na historicidade da linguagem, na produtividade
dos contextos e dos ritmos de leitura. Mas crer que a literatura é pura
casualidade ou anomia é perder de vista as balizas de recepção e crítica do que
quer que seja, posto que elas precisam ser fixadas mesmo que para ser refutadas.
É como se houvesse, enfim, uma instituição cuja única característica fosse a de
jamais fixar seus pressupostos: e a literatura tem sido tanto mais produtiva
quanto mais desmente a vigência de suas bordas, reinstaurando-as para além ou
aquém de onde se julga que estão.
É nisso que penso quando tento entender por que tenho passado os últimos seis anos a escrever o mesmo livro, sabendo inclusive que ele pode resultar em nada. Neste ponto, vontade, contingência e necessidade se encontram, se desmentem, se incriminam.
O ano é 2020 e ainda estamos em quarentena.
Fim.
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