A palavra acaso
Isso
tudo só existe porque existe a palavra acaso. Essas casas sem portas, esses
homens de sorriso frouxo, esse medo que carregam consigo, este abismo. O acaso
e sua regência inelutável. Antigamente me encarecia admiti-lo assim tão
facilmente, por sempre ter desconfiado daquilo que não se pode desdobrar em
explicação contínua, converter-se em sentido, como esta vida mambembe, que se
fabrica às pressas, nas brechas dos dias, e por obrigação, não se converte. Mas
hoje, sim, admito. Ora: se não existisse esta palavra – me diga, queira por
favor me dizer – como
isso aqui, como esse pedaço expugnado de tudo, poderia, toda manhã, ainda estar
de pé, como um enorme monumento ao fracasso humano? E eis a explicação:
nenhuma. Aqui estaria, sim, talvez até com o mesmo nome e as mesmas cores, mas,
ainda assim, não estaria: guardaria outros eixos mais secretos, outras
essências mais casuais, outro sono: seria outro. O acaso já o fez, e está
feito, pois: com ele nos deparamos nas padarias, nesta cidade pomos toda manhã
os pés. Aqui estão, e estamos. Aqui estou. Ante essa gente com olhos vazios,
incompreensíveis, incapazes de manifestar algo além de polos, de metades
opostas, o tempo todo. Como se vivessem apenas em seu lado de fora, como se
pendessem entre um extremo e outro de seu corpo, nunca estancando em algum canto.
Onde escondem a si, em que antessala? Falho em qualquer resposta. Dia após dia
meus olhos seguem seus passos, em vão, pelas calçadas, constatam que vivem
apenas como tipos, como eternos personagens de comédias que ninguém assistiu,
que nem mesmo eles assistiriam. Nunca são a si próprios. E reina o acaso, neste
vácuo; e é neste espaço que rolam as horas, neste mesmo baldio em que se erguem
os países, dia após dia, insistentemente firmes, mesmo que fincados no lamaçal,
mesmo que carcomidos pela maresia, mesmo que roídos pelos ratos, toda manhã,
ainda e novamente, ali. Eis a chave para entender a isso tudo, enfim: uma total
aleatoriedade de todos os acontecimentos.
Muitas
vezes me pergunto por que me debruço sobre eles, sobre suas vidas, de onde
surge este afã. Não me defino como intelectual, mesmo sendo-o e sabendo que
sou. Escrevo. Não pra essa gente, por suposto e infelizmente. Escrevo para quem
pode ler. E essa gente não pode. Escrevo para quem quer ler. E essa gente não
quer. Infelizmente. Ao cabo, são sujeitos incapazes de sequer fazer uma greve
ou uma revolução, algo que melhoraria a vida deles mesmos. Não sei quanto tempo
mais terei que esperá-los. O que sei é que, de fato, no rés-da-rua, são pobres.
Seus simulacros, ainda mais pobres do que eles. E eu não os posso culpar,
novamente, eu sei: mas quem pode com isso que aqui digo? Sobreviver, sobreviver.
Dia após dia sobreviver. Dois braços, inutilmente dois pesos pendendo, dois
membros ainda não amputados, inutilmente pendendo, esperando uma ordem, uma
ocupação. Meu telefone jamais tocou. Nenhuma carta, ao menos. Sequer chamar o
elevador para tentar me entender. E é por isso que escrevo para outros, enfim:
porque essa é a única saída que me resta. Infelizmente. Escrever para os que se
propõem a fechar as cortinas, a se sentar e, pacientemente, produzir; escrever
para os que pleiteiam saborear o fruto de si, por saber que nele está o seu
sentido de ser, e que dele escorre a verdade de tudo que em si existe, no
ímpeto de cada mordida. Sim, eu me incluo neste grupo, o percebi logo cedo,
como meus pais e meus professores do primário também o perceberam. Sou um dos
exemplares desta raça perdidos neste país, e isso explica, logo se vê, meu
aparente isolamento, minhas paisagens de preocupação inúteis, porque roucas,
lamentavelmente roucas. Já muito entendi, já além do suficiente entendo, compreendo
mesmo o meu próprio ato de entender, e sobretudo o seu limite. Porque sei que
não sou tudo. Porque todo o resto é acaso, isto é certo, sim, acaso.
Ora,
é claro que estou viva, e vivo nossa realidade imediata, nossa política, nossa
beleza natural. Eu apenas não passo minha vida a pensar no que isso carrega de
místico, mágico, recôndito, como sói ocorrer com as pessoas daqui. Nasci viva e
morrerei morta: simples espasmo, equação que já resolvi. A realidade nos
planteia excessivos problemas para lidar, e somos poucos os que se propõem a
este esforço único, silencioso. Por isso sigo, e creio em mim. Por isso posso
me sentar aqui, tirar os sapatos e escrever inúmeras páginas sobre qualquer
assunto, cumprindo minha função e suprindo minha necessidade. Depois, sim,
tem-se que remetê-las, e então é preciso contar com a benevolência dos
laureados senhores que venderão todos estes papéis para essenciais e
subterrâneas estantes. Este é o ciclo. Ele me faz estar aqui presente. Só assim
algumas pessoas lerão meu nome, saberão um ângulo bom de meu rosto, e me
procurarão quando precisarem, ou quiserem (eu ainda as espero). Só assim
tirarão seus chapéus quando eu passar nas calçadas, me reconhecerão pelas fotos
das páginas dos suplementos dos jornais, e eu terei o privilégio de andar
sempre amarrada à minha voz pelas calçadas. Acenarei de volta, sutil e
academicamente, com perdão do chiste. Falarei então a verdade, pedirei que não
me adulem, direi que sou um fruto do meu país, que ando em coletivos para
apreciar os tipos humanos, e que qualquer palavra surge de um correspondente no
mundo que se vê em horário comercial nas emissoras de televisão. Mesmo assim,
eles me reservarão o alvo universo das ideias – aquele em que os homens jamais
suam ou espirram – e assim poderão, mais uma vez, ignorar de eu venho, quem eu
sou, a verdade daquilo que eu lhes digo. E paciência quanto a isso.
Os
ingênuos desdenham a todo momento da palavra acaso. Até mesmo eu, que escrevo e
penso desta forma há tanto tempo, por vezes duvido de suas ações. E ora. A
osmose, o cativeiro de viver entre a ganga que vaza e que umedece as ruas, já
me justificam. Mesmo aqueles que aparentam ser mais sábios parecem ainda
procurar uma explicação mesquinha e definitiva para todas as coisas desta vida:
mas olhassem para suas mãos, olhassem agora. Há sempre um limite, um limite,
por deus. E um limite sempre haverá. Essa linha é nítida, e óbvia, como é óbvia
a diferença entre os membros que pertencem ao meu corpo e o que é apenas o ar
atmosférico que o circunda. Sim, ridiculamente, de fato: eis a nossa condição
inerente. Como encontrar explicação para tudo, pois, ou tão ingenuamente
buscá-la? Apenas negando a textura das coisas. Por isso eu mesma não rejeito
meus limites, nem duvido da neblina que vige em torno das horas. A palavra
acaso vive nisso.
Um
exemplo simples: quem me diria ao certo por que eu o encontrei e por que ele
andava daquela forma em direção a uma impossível exposição nesta cidade? Não há
por que. Quem me diria por que ele não se calou quando eu, a perguntar pelo
sentido de um afresco em um vaso, lhe inquiri em verdade sobre o sentido de sua
própria vida? Não haverá por que. Quem me diria por que ele acatou tudo que eu
lhe falei naquela tarde, ainda que eu tivesse plena consciência de ter deixado
numa ruga no canto dos meus olhos aquilo que de fato eu queria lhe dizer? Não
houve por que. Então que me respondam – mesmo que tão fácil seja – o que eu
pergunto agora: por que ele escolheu sair pela porta de serviço e caminhar pelas
ruas vazias de um domingo até entregar seu destino à vontade distante das ondas
escuras? Facilito: também não há explicação. É assim porque foi, e no raiar do
dia, é assim porque é. A palavra acaso cabe exatamente aqui, não vê? Cabe como
uma caixa. Os embaixadores da razão não percebem que ter desvendado a natureza
foi algo que surgiu de um impulso que emana ele mesmo de uma roleta girando em
falso? É acaso contra acaso, sim. Ingenuidade de ingênuos. Muros.
Boa
tarde, escritora. Boa tarde, senhora. Boa noite, escritora. Boa noite, meu
caro. Essa é minha escritora. Assim sendo, assim sendo. E a vida a passar
apesar das pessoas, e elas entregues a um medo mudo de serem entendidas por si
próprias, ou por alguém que casualmente esteja a atravessar a rua. Ao longo dos
anos tentou-se tantas vezes definir as origens deste estado de coisas: Darwin,
Malthus, Cortez, Pelé; tentou-se também traçar uma genealogia, detectar uma
doença, algo que justificasse o desamparo endêmico que vive em nossa gente. Com
razão, sempre, mas sempre com a metade. Todos, e ninguém. Eles – os transeuntes – me saúdam apenas por seu medo e por
sua impotência. Não me decifram, antes mesmo da tentativa já abdicam de me
decifrar. Sou um fantasma em lençóis de marfim assombrando a história deste
país. Abaixam a cabeça para não me verem ou se assustarem com minha presença.
Como se eu fora um minotauro que reina entre edifícios repletos. Eu escrevo
sobre eles completamente sozinha, abandonada mesmo por eles próprios: eis o saldo.
Mas insisto, sim, muitas vezes sem nem mesmo saber o porquê. Algo que sem heroísmo,
de fato, eu confesso.
Em
verdade, porque temos algo em comum, eu e eles, além da terra que impregna
nossa pele e do gosto salgado que não se esvai de nossa língua: porque eu sou
uma pessoa. Ou seja, sou eu também a vítima de um lance de dados. Vítima
daqueles dados que mãos trêmulas lançaram em um abismo, e cujo resultado exato
ninguém jamais viu, mesmo sendo obrigado a vivê-lo. Sim, eu tenho razão, era
domingo. Sim, é verdade, eu bem me lembro. Por exemplo. Ele me dizia coisas
belas. Certa feita, que o céu não era azul; noutra ocasião, que a árvore da rua
adiante era um ser político, assim como ele. Que pele sensível, que olho
vidente e desnudo, tanto que quase o posso sentir recaindo morno sobre mim, me
latejando alguns poros do corpo. Algo real, sim, e eu o sentia belo. Mesmo que
bastasse um descuido para que suas palavras passassem a cair em cascatas
desarrazoadas, criando meandros absurdos no chão de madeira. Mesmo que ele
tenha me dito que seria melhor se eu falasse com os olhos abertos, eu que
sempre fui tão bem compreendida nos táxis, nos mercados e nos elevadores, eu
que sempre fui a artesã de mim mesma em cada uma de minhas palavras. Mesmo que
ele me tenha dito que jamais conseguiu entender a verdade de uma única linha
que eu já tenha escrito, que minha caneta escrevia arfante e por sussurros, por
socos, sem ritmo possível, mesmo assim. Eu lhe respondia que este era apenas o
meu dever, que esta era minha cicatriz, minha chaga, minha luta quixotesca
contra qualquer coisa que existisse. Como de fato é, até hoje. Que se
esforçasse um pouco, que não fosse um sujeito tão medíocre. Eu lhe disse, ora,
como eu lhe disse. Mas não, pouco, quase nada compreendeu.
Sei
que foi se calando ao longo dos anos, mesmo que tentasse por vezes dissimular
na realidade o plano de suas coisas. Como quando me surpreendia pela manhã com
gamboas encrostadas nos espaços entre suas palavras. Ou como quando me fatigava
com convites à vida disfarçados de descrições dos seus sonhos. (Exemplos,
exemplos, exemplos: a história do mundo nunca passou disso.) Mas eu sei ver,
ora, e sempre soube excessivamente ver. Eu reconheci seus subterfúgios, quão
abertos e fáceis, e nenhum deles jamais me corromperia a certeza do caminho.
Por isso eu nunca abri mão de lhe dizer da inutilidade de suas filigranas, da
fronteira tácita entre o adereço e o entulho, das coisas pútridas que misturam
no concreto para que ele seja impermeável. Quando é óbvio, é realmente óbvio.
Naquele domingo, depois do silêncio, julgo que enfim se convenceu. Seu eco,
ainda o ouço, ressoa a certeza daquele que sabe que viver não é o bastante. Tão
seco, tão certo. Há uma beleza resignada em se saber que perdeu. Talvez alguma
grandeza em assumi-lo, como eu agora assumo minha derrota para o acaso. De
alguma forma me entristece a possibilidade de que ele tenha aceitado a verdade
por uma única tarde, e mergulhado ainda no seu ideal de vida tão impossível, e
anterior, como a remota existência de uma saída que pudesse provar.
É
claro que este dia deixou marcas em mim, ora, sou um ser humano, já o disse
duas vezes neste texto. Nunca mais saí do centro da cidade, por exemplo: neste
meio tempo já mapeei todos os seus becos e nenhum deles me poder dizer algo de
razoável. Também nunca mais tomei o chá às três, e só o percebi quando notei as
plantas apodrecendo na floreira. Mas há centenas de coisas a se pensar, e todo
tempo da terra ainda é pouco para isso. Por isso, lamento que exista alguém
possa escolher usar toda a potência de sua única vida em um único ato, como
lenha para jornais sensacionalistas. Falo aqui de muros que nos erguemos, e não
dos que de fato são intransponíveis, é claro. Nisso eu me realizo. Minha vida
serve a mim mesma, escrevo porque tenho que escrever, não pinto, não corro, não
careço de mais nada. Sim, é melhor findar com isso, que o empuxo das coisas
deixe de levar consigo o sentido destas palavras.
Pois
aqui entra, também pela porta dos fundos, a palavra acaso. (Agora provo o meu
ponto, e peço perdão pelo imenso interstício.) Assumo meu fado: o acaso me pôs
esta caneta na mão. Sou assim como meu pai e como meu avô, e que posso fazer se
este é o meu papel atávico? O papel daquele homem foi sumir sob as vagas depois
de eu lhe encher os ouvidos com milhares de frases sobre o que acreditava. O
nosso papel em conjunto foi o de mostrar quem venceria se, todos os dias, fosse
possível confrontar o ele em mim, e todos os possíveis mim e ele em nós dois.
Se fosse possível disputar o reinado do mundo, entre a vida crua e a palavra,
quem venceria. Eis-me aqui escrevendo. Foi assim que a palavra acaso agiu outra
vez com uma naturalidade sem limites, com uma enorme beleza plástica.
Distribuiu os papeis. Deu a ambos os seus. Para que se pudesse apreender o
conceito com mais um dos inúmeros exemplos: este: eu: a pensar nas lacunas em
que cabem as palavras, em quais gavetas, em quais ruas onde os ônibus lotados
de gente cansada atropelam cães e outros animais; ele: a realização mais
perfeita do acaso, e também a mais pontual, meu argumento definitivo.
Dorme
o acaso nesta noite, mas lateja sob a pele. Que ninguém se engane. Esta vida,
seus limites, aquelas cinco letras, a reger todas as pessoas que comem lixo,
que têm certeza, que odeiam outrem, que vivem ao lado dos seixos. Não ser
alguém alegre ou triste. É noite. Mais uma vez escrevo apenas porque necessito.
É dia. Eu sou a prova de que se pode estar do lado do sentido, com os dois pés
fincados. O mundo é um adereço, do qual é necessário livrar-se urgentemente. As
palavras, em verdade, se escolhem sozinhas, em algum lugar onde não frequentei
ou pretendo frequentar. Independem de mim, ou de quem quer que seja. Ainda me
escorrerão pelas mãos muitos livros, talvez dezenas, centenas de artigos.
Sairão porque ainda chegam à costa as ondas. Sairão porque se morrem os homens
em silêncio. O corpo é um fóssil que a contragosto de si persiste. Seria
preciso beber toda a água do mar, enquanto isso. Seria preciso cortar todas as
árvores dos bosques, para compensá-lo. Seria preciso calar o sol do meio-dia,
ocultar todo este país. Tão mais fácil, no entanto, é admitir que o mundo de fato
não existe. Como todos deveriam fazer ao menos vez na vida, mesmo que num lapso.
Avisto de longe alguns focos de incêndio, ao que me parece. Mais uma obra
tardia do acaso, sim, a afirmar. Possivelmente. Preciso decidir o que fazer com
este texto. Preciso me dedicar a algum trabalho mais sério. Preciso também
comprar cigarros, agora o percebo, enfim.
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