Em Narita

 

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O homem de roupa marrom, olhos tensos, mão cerrada sobre o porta-malas de um carro branco esportivo e diante de um policial - do qual apenas se pode ver as costas - não é meu pai. Não sei o seu nome, não sei onde nasceu e nem mesmo se foi em um 25 de março, como meu pai. Não sei se é brasileiro ou mesmo "ocidental", não sei o que faz no Japão - e neste lugar específico do Japão - e tampouco sei por que é interpelado por um policial. 

O que sei é que este homem - ainda que muito parecido e, ainda que estando no mesmo lugar, no mesmo ano, em que meu pai esteve - não é meu pai.

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E então estamos já em um campo de relações. Aquele homem e meu pai estão, a partir de agora, unidos. A partir, em verdade, da experiência interior que o mundo exterior motivou em mim. E que eu motivo em você que - salvo engano - me lê. Estamos aqui unidos. Unidos por um não. 

Aquele homem não é meu pai assim como um livro não é uma colheitadeira assim como um piscar de olhos não é a balança comercial da Namíbia.

Mas um discurso cerziu entidades até então dispersas, uma imagem ligou pontos e - indiferentemente ao não que ali atua à guisa de agulha - aqui eles estão agindo um sobre o outro. E sobre quem experencia a relação.

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No instante seguinte, fica ainda mais óbvio que o homem de fato não é meu pai: ele traz consigo feições orientais. Ele está em Narita e é interpelado por um policial, ele tem um carro esportivo, ele se veste como meu pai se vestia à época, como noto em fotos. Mas eles não são a mesma pessoa; isto é, eles não ocupam um mesmo espaço-tempo simultaneamente. Salvo no discurso que eu invento a partir do que a imagem me produziu.

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Então, quando soa a frase aquele homem não é meu pai aos ouvidos de alguém que pode tentar (re)constituir um sentido (a isso chamamos falantes), as características que cada qual imagina de cada uma das entidades, dos homens, colidem violentamente. Estão contrastadas expectativas, formas, e nisso constrói-se o que se chamou, durante dezenas de séculos, de verossimilhança: Por que ele seria seu pai? ou O que ele estaria fazendo ali?

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Penso, contudo, que passamos tempo demais olhando para o lado errado desta questão. Quando busco verossimilhança, o que tenho é um referencial de mundo - imóvel - que deve embasar o campo das relações sensíveis, limitando seu valor ou sua funcionalidade. O mundo - discurso anterior ao dito - faz com que o dito - cópia rebaixada do mundo - possa ou não possa existir como discurso viável. É uma espécie de distribuição de verbas, de demanda por reconhecimento em que o Estado Soberano - e note-se que quem cuida da realidade é sempre o Estado Soberano - diz quem tem ou não o direito de existir, de possuir um nome, de fazer parte do normal.

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Mas, e se olhamos para outra parte - complementar - da mesma questão? Se eu posso comparar aquele homem ao meu pai - mesmo rechaçando a comparação no instante seguinte - é porque aquele homem poderia ser o meu pai. Mas, mais do que isso, é porque - dentro da ideia - eles de fato são a mesma pessoa, em camadas sobrepostas numa mesma imagem. 

A imagem é, portanto, um campo em que espaço e tempo de objetos distintos podem convergir.

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Para além das fronteiras frias do que se chamou realismo, é como se ouvíssemos linhas melódicas simultâneas e pudéssemos chamar seu encontro de música. É como se mordêssemos uma maçã e seu sabor fosse a soma de sua textura, de sua cor, da fome do corpo, do gosto do corpo por maçã, da iluminação do ambiente em que se come a maçã (etc etc etc). Estamos lidando com campos heterogêneos a partir dos pontos em que - como na imagem - faz-se o nó.


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Mas aqui não se está pensando em nenhuma sorte de estatuto privilegiado para o visível: seria usar um exemplo para contrapor a ideia. Uma imagem vale mil palavras como uma palavra vale mil imagens. Pensar um valor - não como um número em um supermercado, nem como os valores que se atribui a determinado indivíduo burguês, mas como uma unidade quantitativa provisória originada de um experiência qualitativa - é pensar um campo de equivalência parcial entre coisas que são, em absoluto, incomparáveis. 

E no entanto, eis o absurdo, esta é a experiência básica da construção do sentido.

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Portanto, imagens, palavras, cheiros, formas são pensados como recortes arbitrários diante do contínuo do mundo, pontos de equilíbrio precário diante da vazante absurda e sem nome que nos atinge, todos os dias, o corpo. E que nos atinge já mediada por estas unidades que a fragmentam. Existe portanto um lado de fora da linguagem, mas este lado de fora não é a realidade a ser perseguida e compensada, mas uma experiência a ser vivida e lida consciente e inconscientemente - sempre sem resultado definitivo.

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É por isso que, quando assisto Sans Soleil e vejo aquele homem e sua participação de dois ou três frames, penso em meu pai. Eu vejo algo: um instante após, este algo torna-se cor, ideia, sentido, memória. Em uma experiência que não é absoluta, que varia de mim para outra pessoa, e mesmo de mim para mim. Poderíamos dizer que uma mesma imagem produz relações diferentes, mas então voltaríamos ao mundo da verossimilhança e da necessidade de realidade a ser perseguida.

É um mesmo algo que motiva diferentes imagens, afinal. 

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Esse algo podemos chamar, sim, de real.

Mas o real não é o realismo, de forma alguma. O realismo, já foi dito, é a necessidade de demarcar os limites do que é e do que não é o mundo verdadeiro. O real, por outro lado, é o mundo em sua potência de destituição do realismo. 

Uma imagem e uma palavra são produtos imprevistos do real, são efeitos colaterais daquilo que é sem nome e sem forma e que está disposto em lugares não-sensíveis. Mas o real só nos chega pelo sensível: e ele então já é outra coisa, já motiva caminhos, já assume uma forma.


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Mas talvez você me diga que isso é loucura, e que qualquer pessoa que veja um homem dirá "isto é um homem" - a despeito de Primo Levi. Mais ainda: que qualquer animal que veja um homem sentirá sua materialidade ou observará características semelhantes como sua envergadura, sua altura, sua temperatura.

Pois bem, aí está: estamos expostos ao mesmo algo, mas a passagem do algo ao discurso é todo um universo. Provavelmente eu e você sintamos a temperatura que emana de alguém, mas provavelmente isso não nos fará correr ou esconder como determinado animal. A reação é distinta porque o abismo a ser percorrido é - nem maior, nem menor - outro.

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Existe, portanto, voltando aos humanos, o consenso de que um homem é um homem - ou de que um carro é um carro, o vento é o vento? Eu acredito que não, por um motivo simples: não estamos falando de uma entidade a priori que é contestada por determinados discursos: o que estamos dizendo é que o conceito de homem foi, em algum momento, estabilizado - e basta um sopro para que ele perca suas bordas, retorne ao seu estranhamento.

Na antropologia dos sentidos, não se pode dizer que qualquer coisa seja qualquer coisa. O problema está antes disso: naquilo que, recortado do mundo, pode tornar-se justamente uma coisa

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Aquele homem não é meu pai, sendo. Aí está, portanto, o completo absurdo que é o próprio ato de interpretar ou dar sentido a algo. É isso que faz com que Don Quijote tenha sido ao mesmo tempo um livro trágico e humorístico, é isso que faz com que os castrati tenham sido presos após a Revolução Francesa. O sentido é infinitamente motivado: seja pelos discursos, seja pelo real.

Outubro pode ser sinônimo de papel. Basta que se motive os signos o suficiente, a partir de um discurso determinado.


E então parece absurdo que um dia tenhamos tentado separar a experiência sensível do sentido. Seria como abdicar do real em prol do realismo. Seria como observar naquele homem sua semelhança com meu pai e simplesmente pensar que estou perdendo o sentido do filme que está a passar.

Mas onde mais viveria o sentido senão na possibilidade do encontro: neste caso, um sim cerzido num não e bordado num sim.


[Frames de Sans Soleil, de Chris Marker]

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