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Torcer pelo time que, aparentemente, é o mais fraco parece ser uma tendência histórica do brasileiro. Daí se origina a ofensiva simpatia que grande parte dos amantes de futebol tem com Portuguesa ou Botafogo hoje, daí se observam episódios o olé na Copa das Confederações de 2013 com o Taiti ou o certo apreço que os sudestinos guardam aos clubes do Nordeste. Para além de juízos morais mais evidentes e reducionistas, parece muito estranho que uma sociedade que - historicamente - tenha sempre torcido pelos mais fortes (e basta ver como o mito da meritocracia é substancialmente enraizado nas classes baixas e médias) guarde um espaço particular para incorporar o nome do mais fraco ao seu. Como é possível que a sociedade do punitivismo mais tacanho e midiático seja também aquela da empatia imediata ao inferior?
A questão é espinhosa, em primeiro lugar, porque parece ser antinatural. Qual seria o problema em apresentar um comportamento cuja única função seria compensar uma desigualdade com algo a mais? De fato, não haveria problema algum. A questão é, justamente, se estamos diante de um discurso engajado ou meramente cínico.
Volto às imagens do Taiti sendo humilhado um ano antes da Copa do Mundo do Brasil. A torcida aplaude, a torcida vibra, a torcida vaia os adversários, a torcida - diante do placar amplamente desfavorável - age como se a seleção da Oceania estivesse a vencer. Os jogadores aprovam a maneira como a torcida brasileira os adota, os jogadores sorriem. O jogo finda, a seleção europeia vence, as coisas terminam em seu devido lugar. Qual a moral, literalmente, em jogo?
A ideia que quero defender é que, muito antes de simpatia, a defesa do mais fraco parece ser - muitas das vezes, frise-se - a defesa de si mesmo como mais forte, como digno de adotar alguém que lhe parece inferior. Existe, portanto, um instante de reconhecimento da fraqueza do fraco, isto é, o instante em que uma pessoa, notando-se moralmente superior a outra, pode ter dó ou piedade dela e, então, simplesmente torcer. Algo que está na chave de grande parte da moralidade cristã da caridade e da filantropia.
Torcer pelo mais fraco para afirmar-se como mais forte significa não considerá-lo digno de nota ou de comparação consigo. Observe-se, por exemplo, como este tipo de comportamento está ligado a variáveis como: o fraco não pode estar em confronto consigo; o fraco não pode demonstrar ter potencial ou a iminência de tornar-se forte; o fraco não pode ter semelhanças com aqueles que você considera fortes, etc etc. Estamos, portanto, diante do discurso do cinismo. É preciso gostar - não amar, apenas gostar - do fraco para poder humilhá-lo, e é preciso que este gostar não ocupe um tempo excessivo.
Torcer pelo fraco é, aqui, apenas uma face a mais do horror à fraqueza que nossas sociedades não cansam de - estética ou politicamente - manifestar.
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Torcer pelo time que, aparentemente, é o mais fraco parece ser uma tendência histórica do brasileiro. Daí se origina a assustadora simpatia que grande parte dos amantes de futebol brasileiros tiveram pela equipe do Leicester ou da Chapecoense, daí se origina a necessidade que - em contextos exteriores ao nacional - sempre se veja uma esmagadora maioria de pessoas torcendo contra o time mais rico, pelos jogadores de seu continente. Para além de juízos morais mais evidentes e reducionistas, parece muito estranho que uma sociedade que - historicamente - tenha sempre torcido pelos mais fortes (e basta ver como o mito da meritocracia é substancialmente enraizado nas classes baixas e médias) guarde um espaço particular para incorporar o nome do mais fraco ao seu. Como é possível que a sociedade do punitivismo mais tacanho e midiático seja também aquela da empatia imediata ao inferior?
A questão é espinhosa, em primeiro lugar, porque parece ser antinatural. Qual seria o problema em apresentar um comportamento cuja única função seria compensar uma desigualdade com algo a mais? De fato, não haveria problema algum. A questão é, justamente, se estamos diante de um discurso engajado ou meramente cínico.
Volto às imagens da comoção causada pela Chapecoense até o instante de um dos maiores anticlímax já vistos na história. O que se viu ali foi um verdadeiro engajamento em nome do time de ascensão meteórica, jogadores carismáticos, orçamento curto diante de gigantes como San Lorenzo ou Atlético Nacional - ambos recém-campeões sulamericanos. As pessoas sabiam o horário dos jogos, o nome dos atletas, as pessoas passaram a encarnar aquela luta - e um tanto mais quando o acaso jogou seus dados e deu-se o que se deu (talvez justamente pela resposta da história, tão comum ao brasileiro, ter sido um autoritário não).
De fato, não podemos chamar de forma alguma isto de cinismo. O que parecia estar, literalmente, em jogo era muito mais uma espécie de pacto de classe entre todos que estão na parte dos sem parte, como se a partir do logro daquele que é visto como igual a você estivesse a semente - ou a possibilidade - do próprio logro de todos os seus iguais. Como se no ato de torcer estivesse algum tipo de remota e secreta participação no êxito daquele que em nada te diz respeito diretamente, mas que - como você - está do outro lado de algo maior.
Torcer pelo mais fraco para reafirmar-se também como fraco significa projetar um cenário em que toda sua classe será considerada digna de nota ou de comparação. Eis a diferença da solidariedade à filantropia que está na gênese do próprio torcer. Torcer é como, em determinadas ontologias, rezar: isto é, como observar a semelhança da substância divina repartida entre todas as coisas, sendo elas assim dignas de nota e intenção.
Observe-se, ao cabo, como diversos times buscam requer-se como time do povo. Como, em verdade, a partir de chacotas sobre a classe social de determinadas torcidas - gambás, mulambos, presidiários, macacos - reverteu-se o sentido do insulto em identificação. E então torcer para o time do povo torna-se torcer para si próprio, naquilo que o indivíduo, o grupo e a instituição convergem como ferida aberta e como potência de cicatrizar.
[Este texto é um ensaio sobre as relações difíceis entre ato e discurso. Antes de ficar sobre um muro epistemológico, note-se que estamos lidando com posições complementares, correntes simultâneas dentro do fluxo absurdo de uma história pautada em todos os tipos de violência.]
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