Notas sobre Futebol e Estética (7) - A Lei e o Jogo

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Muitos relatos apontam que o primeiro gol de bicicleta da história foi anulado. Isso ocorreu, ao que consta, porque o árbitro da partida, diante daquele gesto antinatural e ainda sem nome, não teve reação senão concluir que aquilo deveria ser irregular. A chilena não estava prevista, tampouco era proibida: qualquer tipo de decisão seria necessariamente uma arbitrariedade, e implicaria coibir ou postular uma nova possibilidade para o esporte. Diante do inominado, o futebol sempre deixou claro que precisa operar no vácuo da lei.

Com o passar dos anos, ficou nítido que havia uma diferença de base entre o futebol e os demais esportes, algo que explica sua popularização irrestrita e que se mostra todos os dias diante da capacidade infinita de se criar modalidades e formas adaptadas para um mesmo objeto, a partir do mesmo conjunto de regras. No futebol, a lei é impredicável. Isto significa, pois, que é impossível descrever de maneira a esgotar o número de possibilidades engendradas em campo, já que haverá sempre a absoluta exposição ao acaso que fará com que a lei gire necessariamente em falso.

Tome-se como exemplo a regra do toque na mão. Em abstrato, parece ser algo muito simples pensar que, se a bola encosta na área do corpo correspondente ao que se chama de braço, o lance é irregular. Pois bem: eu que sou - ainda - relativamente jovem, me lembro de ver as interpretações desta regra serem alteradas algumas vezes. Há alguns anos, se comentava sobre a intenção do jogador em levar sua mão à bola: e então o árbitro poderia, a partir de uma leitura corporal, propor uma absurda análise psicológica de um jogador. Então, alterou-se a regra para anular todo e qualquer toque de mão, o que se mostrou hediondo diante da possibilidade de se chutar deliberadamente a bola na mão do adversário. Hoje, medem-se ainda, creio eu, uma série de variáveis como a distância da bola, a expansão do corpo, a relevância do toque. A regra primordial do futebol é, em resumo, puramente interpretativa e contextual - como nossas cláusulas pétreas deveriam ter deixado claro há muito tempo.

A história do futebol é a história de como as regras sempre precisaram correr atrás do vácuo deixado pela imprevisibilidade dos gestos. Se é possível recuar de cabeça para o goleiro pegar com as mãos, não é permitido deitar-se para isso (porque alguém o fez). Se um mergulho na área gera um cartão amarelo, isso surge para inibir que os jogadores enganem deliberadamente o árbitro (no entanto, alguns que tropeçam sozinhos acabam sendo punidos por uma interpretação sobre o seu corpo). Se o bandeira tem uma tarefa impossível, a implantação de câmeras fará com que ela seja diferentemente impossível - agora de uma maneira bem mais idiotizada.

Existe no futebol, portanto, uma clara argumentação sobre aquilo que nossa vida jurídica parece incessantemente recalcar: a impossibilidade de ser puramente justo. Por isso, é sintomático que todos os esportes que façam sucesso nos Estados Unidos tenham um ostensivo protagonismo dos árbitros, que interrompem o jogo a torto e a direito, observam monitores, fazem gestos histriônicos e usam microfones com impressionante nitidez: está ali um argumento sobre a própria performatividade de um modelo jurídico que enganou Tocqueville a partir da crença - talvez em algum momento ingênua - de que se era, sim, justo. Por isso, diante das críticas sobre o fato de o futebol - diferentemente do tênis ou do rugby - não ser um esporte de cavalheiros, uma primeira resposta seria: sim, de fato, não há aqui um pacto burguês, posto que a regra mostra a cada momento o seu inabalável cinismo, a sua incompletude.

Mas a regra não pode ser abstraída, e aí está o ponto mais interessante da coisa. Os jogadores não podem se trucidar indefinidamente - pelo menos após 74 - ou sair de campo quando bem entenderem, por exemplo. As regras existem ali da mesma maneira como há regras na menor das frases de um falante de um idioma qualquer: mas elas estão constantemente - e literalmente - em jogo. Deve-se falar, portanto, não de uma ausência de regras ou de um esforço para burlá-las - o que rebaixaria moralmente o futebol aos olhos dos cavalheiros - mas de uma proposição sobre o próprio significado do que significa regrar.

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Diversas práticas antidesportivas do futebol giram em torno das faltas e se manifestam em seu léxico imenso. Cavar a falta, chamar a falta, mergulhar, se jogar, matar o lance. A falta - a infração máxima, aquela capaz de interromper todo o movimento do jogo - é, tanto quanto o drible, uma arma para vencer. Isto significa - e todos o sabem, e todos o fazem - que, para vencer, é preciso operar sobre a infração a ponto de ela se tornar, em determinados contextos, desejável ou necessária. Tem-se, assim, um jogo que internalizou a quebra da regra como parte de seu funcionamento, que assumiu a borda do ingovernável como parte do artifício. E que não cessa de fazer esse movimento, forçar mudanças na regra - imagine, por exemplo, o mundo do futebol antes dos cartões ou da linha de impedimento, e aí está.

Contra a ilusão da clareza, o futebol é portanto o jogo da ilusão. Não entender que, na lógica do jogo, o fingimento, a dissimulação e a mentira não carregam nenhum aspecto moralmente condenável é sustentar uma oposição colonial que situou sem lei, sem rei e sem fé uma boa parte do mundo. Curiosamente, aquela em que o futebol foi, senão fabricado, inventado. 

Nisto situa-se, mais uma vez, a velha discussão sobre como a malandragem se dividiu em condenação a priori ou marca da identidade nacional. De um lado, a crença de que um povo sem um regramento estrito seria fadado ao fracasso eterno; do outro, a crença de que qualquer forma de regramento significaria a falência das características de determinado povo, o que na prática levaria a uma condenação da vida social à absoluta aleatoriedade. E no entanto nada disso. Voltando a Oswald - nosso primeiro filósofo e futebolista -, a alegria é a prova dos nove. Isso significa, aos olhos do futebol, observar como nenhum modelo de regramento que não preveja sua própria dissolução está fadado, necessariamente, ao cinismo: por isso, a iminência do caos - no drible, no fingimento, no absurdo da interpretação - é necessária para que o futebol possa de fato existir como tal.

O dilema do futebol - e nisso Wisnik já versou o bastante - é o dilema de qualquer sociedade ausente dos núcleos de poder da civilização ocidental: operar a partir de formas de regramento que não sejam pautadas em entidades abstratas ou valores pretensamente universais. O futebol não é um jogo de cavalheiros não por sua ausência de pacto, mas porque seu pacto é, no fim das contas outro: é o pacto da lei com a existência inevitável de seus limites.

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Por isso, a passagem do futebol brasileiro à era do chamado profissionalismo foi tão traumática. Feita à moda militar, essa passagem se deu, no Brasil, a partir da expoência de nomes como Zagallo, Cláudio Coutinho, Parreira, Felipão: nomes que, diante de uma demanda interna por ordem, ofereceram formas disciplinares fundadas em arbítrios próprios, autoritarismo, gratuidade - Zagallo toma o lugar de Saldanha; Jorge Mendonça aquece por 22 minutos em 78 aos olhos de Coutinho; Parreira e Felipão não admitem nenhuma participação no maior fracasso da maior seleção na história, mesmo tendo, até então, assumido todo o sentido da eventualidade de seu sucesso. 

Existiu, portanto, um movimento de modernização conservadora também no futebol brasileiro, que explica como, hoje, o Brasil - também no futebol - permanece como fornecedor de commodities e matéria-prima para países centrais no mundo ocidental. Zagallo, Parreira, Coutinho e Felipão surgem para o futebol como nomes responsáveis por internalizar a voz da lei diante daquilo que era visto como puramente aleatório: assim como governos militares que, à custa de anos de atraso social, repressão e dívida externa, impuseram uma sociedade que se gabava, ostensivamente, de estar em ordem - mesmo que essa ordem não significasse nenhum tipo de mudança estrutural séria, comprometida com algo além de repreender seus antípodas. Zagallo contra Dadá e Romário, Coutinho contra Mendonça, Felipão contra Djalminha e Romário outra vez: a voz da ordem precisa impor-se a qualquer custo, e selecionar seus alvos: aqueles que escolhem não se submeter.

Pode-se argumentar que, nos nomes elencados, passam todos os títulos que o Brasil já logrou receber em Copas. E isto é a mais pura verdade. Mas o que significa essa constatação? Pensar o futebol a partir do resultado não significa subtrair tudo aquilo que ele internaliza como dobra na lei, como iminência de catástrofe? Não é exagero, portanto, afirmar que, para bancar os triunfos pontuais de uma trajetória de individualidades luminosas e imprevistas, a cultura da voz da ordem tenha imposto a completa exclusão do Brasil no verdadeiro profissionalismo do esporte, um processo que inclui infraestrutura, investimento de longo prazo, formação continuada e porosidade a outras culturas - justamente tudo aquilo que os governos brasileiros insistentemente negaram ao seu povo ao longo dos anos, em nome da mesma ordem. Por isso, a cooptação do futebol pelo nacionalismo ufanista se mostra, justamente, como uma maneira de direcionar a potência daquilo que se vê em campo e de circunscrever limites para aquela ética particular: o Brasil é o país do futebol porque nunca quis se assumir a possibilidade de o futebol ser o país do Brasil.

Longe da teleologia dos resultados - que sequer se sustenta de perto, pensando-se na verdadeira trajetória das seleções brasileiras até seus títulos -, o que se tem é um cenário em que se confunde, deliberadamente, a necessidade de um projeto com a necessidade da lei, justamente para que não se instaure projeto nenhum. Uma confusão que desmente, com efeito, a própria história do futebol, a maneira como sua proposição sobre a legalidade redimensiona indefinidamente o que significa estar diante da lei: no futebol nunca se está sob a lei, mas, no sentido oposto, é a lei que está sob o pés.


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Os gênios do futebol sempre foram aqueles que mais flertaram com o risco do ostracismo, e não à toa a história do futebol brasileiro é tão permeada de jogadores de carreira curta, repleta de hipóteses não realizadas, de vícios e violências - de Heleno de Freitas a Dener. Parece que, por mais que o jogo admita e precise do descumprimento da lei, em algum momento ocorre a efetuação do recalcado - o jogo nunca está ilhado da sociedade que o cerca, afinal. Mas, por outro lado, características como a reversibilidade constante (não há turnos de defesa e ataque) e a possibilidade de se ter um jogo coletivo resolvido de forma individual em um ou dois segundos faz com que o futebol admita e, mais, necessite da existência de indivíduos que neguem o sentido de qualquer discurso ou de qualquer tipo de organização a priori, mesmo estando ali inseridos pela necessidade da genialidade - da exclusão.

Aí está o espaço em que surge alguém como Ronaldinho Gaúcho. Antes de qualquer drible, antes de qualquer noite europeia, talvez o lance que mais resuma a posição que o bruxo assumiu no futebol mundial seja bem mais singelo. O jogo é Atlético Mineiro e São Paulo pela Libertadores, já no fim da carreira do jogador. Há uma interrupção, e Ronaldinho dirige-se ao goleiro rival para trocar algumas palavras e, em um mundo pré-coronavírus, dividir uma água. O jogo retorna com Ronaldinho incógnito e desmarcado dentro da área adversária, sem impedimento diante de um lateral. O gol sai com naturalidade. O título inédito sairá, da mesma forma, com a naturalidade dos milagres.

Alguns anos depois, Ronaldinho está preso no Paraguai diante da alegação de portar documentos falsos, bancados por um grupo de estelionatários locais. Ali, com algumas peladas e churrascos em um presídio, depois com a prisão domiciliar em um hotel, aquele que foi o último postulante ao título de melhor jogador da história passa mais da metade de um ano, inapelavelmente. Até ser posto em liberdade e voltar a fazer comerciais, sem alusão alguma - é claro - ao fato, mas perdendo o posto até então vitalício de embaixador do Barcelona. 

O que essa história diz sobre o futebol? Talvez absolutamente nada. Ela, no entanto, parece mostrar que a questão da lei - como um recalque - precisa sempre retornar ao real daqueles que pretenderam desafiá-la. Como uma lembrança do fato de que o futebol não é uma ilha e nem se presta a nenhum tipo de cooptação por aquilo que não é o futebol: os espaços estão, o tempo todo, sobredeterminados. A ausência de um projeto social e o contraste de maneiras irreconciliáveis de se lidar com a lei retorna a partir da queda vertiginosa das figuras, da fugacidade das carreiras, da falta de fomento a modalidades vistas como menos importantes, da incapacidade de se criar a diferença a partir do mero esforço social de organização. O futebol não explica o mundo, tampouco o mundo explica o futebol: a relação entre as duas coisas está justamente no vazio representacional proposto pelo acaso, pelo contraste da glória com a normalidade, pela imprevisibilidade das formas e, por fim, pela inegável diferença recíproca que o jogo propõe ao campo social.

Maradona, Adriano, Garrincha, Fashanu, Escobar, Barbosa, Ananias são pessoas cujas histórias não têm moral alguma. E isso é uma das coisas mais difíceis de se admitir em um mundo cujas leis são pautadas em porquês simples, determinações deliberadas, essencialistas, canalhas. Não existe nenhuma ligação óbvia entre o lado de dentro e o lado de fora: estamos em uma fita de Moebius, e os lados não cessam de nos driblar.

Final para Pelé, aos 80 anos

Pelé joga a Copa de 66 apenas com a perna esquerda, graças a entradas deliberadas dos portugueses em um mundo sem cartões. Pelé dá uma cotovelada e desacorda um uruguaio em 70. Pelé torna notórios gols quase realizados. Pelé beija Mohamed Ali. Pelé pára uma guerra na África, mas ninguém sabe muito bem se isso é verdade. Pelé tem um filho preso por tráfico, mas homenageado pelos Racionais MCs. Pelé é campeão do mundo antes de completar a maioridade. Pelé faz dezenas de gols nos times da marinha, do exército e da aeronáutica. Pelé é recebido pela cúpula militar após ser campeão do mundo. Pelé inventa o futebol nos Estados Unidos e diz love, love, love.

É difícil encontrar uma vida com termos mais irredutíveis que a de Pelé. Talvez por isso seja óbvio que estejamos diante do melhor jogador da história: não só pelos milhares de lances antológicos, mas justamente pelo fato de estar ali aquele que mais internalizou na vida social as contradições do futebol e, no campo de futebol, as contradições da vida social. A maneira como Pelé se apossou da lei em campo está defletida na maneira como a lei se esforçou para, fora de campo, se apossar de Pelé - aparentemente sem nenhum tipo de contestação por parte de Edson. Estando perpetuamente às margens da lei quando em campo - redefinindo mais do que ninguém o alcance do impossível -, Pelé assumiu um papel central fora dele - tendo inclusive o aparente privilégio de tornar-se nome de lei ainda em voga no Brasil.

Talvez aí esteja o resumo do ponto em que nos encontramos diante da dupla visão reducionista que diz que o futebol é só um esporte ou daquela outra que diz que o Brasil é o país do futebol, e a isso se resume sua vida social: de lado a lado, mais uma vez fica recalcada a discussão sobre a lei, até que ela retorne na forma de catástrofe ou aporia. Não se pode reduzir um termo ao outro, de maneira alguma. Quando Pelé chapela 4, 6 ou 8 jogadores na Vila Javari, o que está em jogo não é de que forma a sociedade explicaria a existência assombrosa daquela genialidade, nem mesmo de que maneira aquela genialidade explicaria, no sentido oposto, as faltas daquela sociedade: há um porvir, uma lacuna no possível que, entalhada pelo gesto irrepetível e nunca documentado, mostra-se de forma arrebatadora e impele a algo ainda sem nome, nunca predicado (neste exemplo derradeiro, ao menos, o árbitro teve o bom-senso de não atrapalhar).



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