Notas sobre Futebol e Estética (8) - Alianças demoníacas

Talvez uma das grandes lições da antropologia ao mundo ocidental seja aquela que versa sobre a fragilidade do conceito convencional de família e filiação. Assim como a raça, o sexo, o gênero e outros constructos cuja administração é tão cara a uma agenda conservadora - cujo grande argumento é justamente o fato de que essas relações ou formas seriam naturais -, a defesa da família assume-se como a necessidade de se estabelecer linhagens, isto é, genealogias e separações em que as posições em jogo estejam determinadas antes de tudo que possa se dar. E não sejam reatualizadas, sequer havendo esta hipótese.

Diante do sonho das revoluções burguesas em acabar a constância das linhagens - naquilo em que significavam controle sem fim da ordem social -, foram estabelecidas (ou melhor, reafirmadas) outras formas de hereditariedade e controle por meio da herança, inventando-se uma espécie de espaço vazio entre natureza e cultura, como um terreno baldio (comodamente) do não pensável. Uma mulher é uma mulher; um homem preto é um homem preto; uma família é uma família. Em uma sociedade em que enunciados tautológicos prevalecem - como a buscar um limite real para a extensão da linguagem -, as coisas simplesmente são

A família, assim, não é tida como uma coisa social (pois uma pessoa já nasceria biologicamente inserida nela) e tampouco como algo natural (posto que vegetais, planícies ou animais não teriam família, mesmo inevitavelmente... nascendo). Tem-se, portanto, um conceito que, mais do que ser readequado para caber em alguma definição coerente de natureza ou cultura, releva justamente a fragilidade desta oposição: quando se faz necessário um grande número de concessões e interditos, você está diante de um poço sem fundo.

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Há dois discursos correntes, antagônicos mas estranhamente parecidos, que versam sobre o modo de inserção da pessoa na massa futebolística.

Um primeiro diz que em um estádio de futebol é possível encontrar-se com pessoas de "todas as classes, raças, ideologias", uma espécie de conciliação absoluta ou mito democrático. Neste discurso - que, inclusive, recentemente ouvi em um debate de direitistas sobre a gestão do Esporte Clube Bahia - a ideia é de que o futebol é um terreno que não promoveria a identificação, mas a perda de predicações. No futebol, portanto, você deixaria de ser quem você é - na infinidade de particularidades segregadoras - para integrar-se à massa em um tipo de grau zero da experiência social. Subjaz a esta fala, já fica nítido, a ideia que leva à existência de projetos ou instituições como a Escola sem Partido: a concepção do espaço público como campo a-político, folha em branco em que os indivíduos - respeitando-se mutuamente - vivem a si mesmos.

O segundo discurso a ser citado aqui é aquele que vê no futebol um campo a mais de identificações a ser somado a todos os outros que atravessam um sujeito. Nisto está pautada, afinal, a vulgata do pensamento sobre a chamada interseccionalidade, que nada mais é do que a ideia de que um sujeito seja a soma de seus predicados - tendo, portanto, pouca ou nenhuma autonomia sobre quem de fato é, já que seu lugar no mundo está dado de antemão pela forma como nele se situa. Esta visão, que vem de uma leitura muito apressada de determinado estruturalismo francês, compreende então que o futebol é a fonte de um encontro do indivíduo consigo mesmo, um local em que se manifestaria aquilo que ele de fato é - inclusive no próprio ato de estar ali, e da forma como efetivamente está.

Mesmo que simétricas, ambas as leituras parecem apresentar um mesmo problema de base: pensar o indivíduo como grau zero da experiência social, isto é, conceber que o todo seja resumível à soma das partes - que as partes sejam uma decorrência natural do todo. Na primeira linha, o indivíduo pode (deve) ser separado do social, pois em nada coincidem; na segunda, ambos coincidem diretamente em tudo, sendo apenas espelhados. De lado a lado, portanto, o que se tem é uma redução ou uma falsa proporcionalidade: o mundo nunca sairá do lugar, posto que sempre esteve lá.

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Diante disso, parece interessante voltar à antropologia. Ali, e cá penso sobretudo na leitura de Viveiros de Castro a Lévi-Strauss, parece estar uma saída futebolisticamente interessante ao falso dilema de pressupostos iguais. 

Olhando para o mundo ameríndio, há uma série de estruturas sociais erguidas na possibilidade relacional entre indivíduos, grupos, não-indivíduos, possíveis-indivíduos, possíveis-grupos (etc) em que a posição que ambas as partes assumem em um contexto é determinante para sua identidade provisória. Torna-se evidente, portanto, o fato de que a estrutura familiar de nossas sociedades é apenas um sistema relacional possível, dentre muitos.

Cito aqui de orelhada e um tanto abstratamente (como faz parte dos métodos deste blog - ver primeira postagem) dois breves exemplos de como estamos diante de estruturas que efetivamente nos dizem algo sobre os limites da genealogia familiar. O primeiro remonta ao tão caro enigma da antropofagia: o que está em jogo ali é, afinal, um processo em que, a partir da imersão (literal) no outro, determinado grupo tem em vista aprimorar suas características próprias, tornando seu aquilo que até então era outro: não se pode pensar, portanto, que exista alguma coisa de essencial ou própria ao grupo. Com isso, tem-se que as características de indivíduos ou coletividades são conduzidas e moldadas quase ao acaso pelo contato que ocorre com outros grupos. O próprio é, então, fruto de uma deriva no outro: só há nós porque e a partir do eles

O outro exemplo está na chamada dinâmica de predação, em que a caça a determinado animal (em determinado grupo) torna-se uma situação limite de perda e aquisição de características. Estar diante de um animal é estar suscetível a uma maneira distinta de ser visto: a onça pode ser o outro do homem, mas o homem não é necessariamente o outro da onça, posto que seu sistema de relações com o mundo e com o corpo é radicalmente distinto. Caçar é, portanto, também ser caçado: isto envolve um jogo duríssimo em ceder ou não ceder sua posição, seu corpo ao outro.

Contadas aqui de forma breve (e porca, convenhamos) estas duas dinâmicas básicas do mundo ameríndio deixam evidente aquilo que impediu todas as tentativas de domesticação, catequização ou escravização de grupo indígenas: é impossível colocar réguas qualitativas na relação entre pessoas e pessoas, pessoas e coisas, coisas e coisas. Não há um único momento, assim, em que se estabilizem identidades: o contexto fará com que elas estejam perpetuamente em negociação, algo que é impensável em um mundo em que haja qualquer mínima forma de lastro - seja ele a lei, o Estado ou o dinheiro. O eu não existe senão como outro do outro.

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Todo este interlúdio para dizer que, distante do nexo familiar, hierático ou hereditário, o futebol (ou ao menos a experiência do futebol) está mais para o mundo ameríndio do que para as sociedades do capital - em suas leituras que ligam o futebol a uma lógica de filiação. A ideia é a seguinte: do jogo à torcida, o futebol é um esporte de posições relacionais, comunidades súbitas, encontros fortuitos e perdas definitivas.

Decerto, há incontáveis vezes em que cada um de nós presenciou uma situação em um jogo de futebol em que algo calhou de acontecer. Há derrotas e triunfos inexplicáveis, há decisões sem nexo, há eventos sem cabimento algum. Todo o esforço de taticalizar o jogo - vindo da Europa, como já se falou aqui algumas vezes - surgiu com o intuito de tentar limitar o campo de ação do insondável - o bom e velho Sobrenatural de Almeida. Por que isso se dá ao lume de maneira tão nítida no futebol? Creio que isso passa por uma série de coisas também já comentadas aqui: o fato de que o jogo de bola com o pé é extremamente antinatural, a existência de turnos simultâneos de ataque e defesa, o espaçamento amplo de uma grande quantidade de pessoas (que faz com que individual e coletivo estejam se redeterminando a todo momento), a capacidade de limitação, modulação e quebra do espaço de jogo (algo que a linha de impedimento possibilitou). Esses aspectos mais "estruturais", somados ao primado do drible e da enganação como lei (já falamos disso) fizeram do futebol um esporte que tende ao caos absoluto, isto é, à perda e reformulação incessantes -  e é esta então sua ordem.

Como consequência a esta estrutura do jogo, criou-se ao redor do futebol uma cultura que se poderia chamar de integração sem familiaridade, isto é, de relações que assumem outros polos e valores incessantemente. Torcer ou simpatizar por um time é uma escolha (ou uma quase-escolha) que mostra como um esquema de predicação da vida social é falho: pense-se, por exemplo, em como é possível conceber uma gradação de afeto com relação a indivíduos e times, em como há os torcedores que apenas acompanham e aqueles roxos que de fato vivem seu time: eles estão dispostos de forma diferente, portanto, diante de um mesmo esquema ou símbolo. Mesmo na vida de uma pessoa, o time-do-coração muda de valor ou importância em determinados contextos e a partir de diversos acontecimentos, que fazem com que o time ganhe ou perca relevo e importância - e basta ver a relação entre períodos de seca e indicadores de torcida para que se saiba disso.

Sendo assim, tem-se a medida da resposta antropológica do futebol aos esforços em colocá-lo em réguas quantitativas: o jogo é relacional, isto é, é preciso instituir réguas qualitativas para se jogar, pensar ou viver o jogo. Por isso, afinal, a enorme maioria das discussões sobre o futebol é interminável: quem é ídolo e quem não é, quem é melhor que quem, por que algo dá ou deu certo, o quanto faltou para algo ser diferente: todas essas lacunas constitutivas ao jogo que em geral são preenchidas por jargões ou frases feitas (clássico é clássico e vice-versa, pênalti é loteria, futebol é detalhe/uma caixinha de surpresas).

O ponto é, portanto, o seguinte: não há espaço para genealogias no futebol, já que se está diante de uma pura experiência de deriva, contextual e relacional. Isto talvez nos devesse ensinar algo sobre o campo político e os movimentos da sociedade contra o Estado, principalmente o fato de que ninguém é o que é, de que existe sempre um contínuo entre os polos, de que duas coisas em relação são uma coisa terceira. Diante da hagiografia e do mundo parental, o futebol está muito mais para aliança demoníaca, isto é, para a ideia de ruptura e de provisoriedade. Existe, portanto, um vazio central na experiência do futebol que é, justamente, o local em que o valor de alguma coisa altera-se, muda sua identidade: não à toa, mais do que um jogo com bola, o futebol é a arte da ocupação e do esvaziamento de espaços, algo sintetizado de forma mágica pela pedalada e pelo corta-luz, movimentos estéticos-éticos que explicam, melhor do que eu poderia, estes pontos.

Sob o risco de soar lunático ou radical demais, digo que há no futebol uma ideia possível de sociedade em que seja admissível que algo não tenha razão, essência ou causa, mas que tampouco estejamos falando da ausência de regra - o futebol é, afinal, a arte do impossível dentro do possível. Se a família e o nexo hereditário surgem - como um Guardiola no futebol - para tentar limitar ou explicar as posições que um sujeito pode assumir, e se a visão sociológica que tenta se contrapor ao nexo conservador tem feito exatamente o mesmo movimento, só me resta lembrar de quando o insuspeitado Cocada decidiu o campeonato carioca de 1988 com um gol aos 41 do segundo tempo, sendo expulso na comemoração, totalizando 5 minutos em campo ao cabo. Eis como podem surgir os nexos decisivos para algum momento historicamente incontornável: do banco reservas para o gol, do nada para o algo, do impossível para o necessário. Isto, claro, do ponto de vista do Vasco.  


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