Há um ditado corrente no mundo do futebol, geralmente usado de forma depreciativa, que diz que se mandinga ganhasse jogo, o campeonato baiano acabaria sempre empatado. Mesmo com a conotação da frase - o que significa mandinga nesse contexto? -, existe ali um ponto de verdade: a relação entre futebol e sagrado passa por inúmeros planos e contradições, permeando e complexificando o jogo, algo que diz muito sobre a forma como se desenha a própria posição da crença dentro de sociedades como a brasileira.
A cena inicial deste texto pode ser encontrada na internet: na final do campeonato brasileiro de 1988, um enorme ebó foi erguido em Porto Alegre à porta do vestiário do Bahia - que, naturalmente, contava com um pai de santo apto a desativar suas propriedades. Havia um ali, portanto, uma ideia de que o jogo deveria ser pautado também no campo do divino, onde os baianos levariam natural vantagem - Salvador é, afinal, assentada em nome de Exu -, devendo ser surpreendidos pela astúcia dos gaúchos. Muito longe de um fato isolado, a presença de rituais místicos e sagrados como impedidores ou motivadores para acontecimentos é, ainda hoje, uma necessidade para vários times e grupos que institucionalizaram a mandinga como meio de se obter triunfos ou acabar com séries azaradas.
No entanto, muito mais do que qualquer outro fato social, o futebol é de fato estruturado no caos: repleto de explicações subterrâneas e de acontecimentos que são de fato inexplicáveis sob o ponto do pretensamente racional - do Brasil de 82 à saída do San Lorenzo de Boedo, da fila histórica do Corinthians às finais perdidas por Marta e Formiga, dos 3 vices do América de Cali - causados, é claro, pelo diabo que está no escudo - até os rebaixamentos da Portuguesa. A relação entre necessidade e gratuidade está em jogo, a todo o momento, no futebol: uma coisa é puro acaso até o momento em que não tinha como se dar de outra forma: nada é mais óbvio do que aquilo que não faz aparentemente o menor sentido.
Mas, nessa digressão um tanto quanto mole, torna-se muito interessante pensar o lugar que as religiões cristãs ocupam nesta ecologia do sagrado. Considerando-se que, hoje, sobretudo a partir da matriz neopentecostal, tem-se um discurso em que o religioso está atrelado a uma ética individualista, podemos dizer - na melhor das hipóteses - que o futebol coloca algum tipo de complicação para deus. Não fui eu, foi deus, dedos para o céu e joelhos ao chão: o futebol parece ser, hoje, o esporte dos escolhidos, isto é, daqueles que foram eleitos para passar ilesos pelos mares de pragas e tormentas e fazerem uma ou duas assistência depois. Claro, é cômico pensar que, muitas vezes, os eleitos acabam fazendo gols, desferindo cotoveladas e prejudicando uns aos outros, algo que não parece criar nenhuma forma de paradoxo ao pensamento que atrela o maior engajamento ao divino ao maior grau de sucesso individual, profissional e financeiro de determinada pessoa.
Essa relação só mostra como a chamada meritocracia de deus - isto é, a ideia de que uma pessoa tem sucesso em sua vida porque seguiu à risca a cartilha cristã - tornou-se uma ética de vida que, também no futebol, encontra campo para criar-se. Estamos falando, afinal, do país em que existem as facções de cristo, dentro das quais os indivíduos se comunicam por meio de versículos, destroem terreiros e policiam costumes em nome do bem. Ao se lançar os termos da vida social - e, portanto, também do jogo - às formas da dicotomia bem/mal e do merecimento individual, o que temos vivenciado é um achatamento no plano de experiência coletivo, reduzido a uma espécie de performance autoegóica em que é necessário crer, a todo o momento, que se é digno do que se é - sendo o outro, portanto, digno também, é claro, mas um pouco menos do que você.
Está claro que, no caso do futebol, este pensamento faz com que se lancem juízos morais de toda ordem a jogadores como Maradona, Ronaldinho, Garrincha ou Balotelli, isto é, àqueles que conseguiram quase tudo em suas vidas mesmo não o tendo merecido. Naturalmente, este discurso consegue explicar com muita facilidade como esses jogadores tiveram carreiras abreviadas e atribuladas: não seguiram à risca a cartilha, desperdiçaram o dom divino que lhes foi concedido, preferiram a noite, as mulheres, a bebida, etc. Na atual geração que cresceu com duas estrelas pautadas na discrição (muito mais para Messi), na repetição e no trabalho, nunca pareceu fazer tanto sentido esse tipo de discurso: como se, diante de dois exemplos que provam a regra, todas as inumeráveis exceções fossem necessárias.
O esvaziamento do discurso que liga o futebol ao merecimento divino parece ser, contudo, limitado pelo próprio jogo. De volta ao vazio simbólico que o acaso e caos propõem à causalidade - já que pode perder quem mereceu, pode vencer quem não mexeu um dedo, pode sobrar uma bola para o menino da base, pode se lesionar gravemente o craque amado pelas multidões, etc - parece fazer muito mais sentido - ético mesmo - acreditar nas forças místicas de uma galinha sangrada do que na vontade divina que faz valer seu nome. A tentativa de moralizar o jogo de futebol encontra precedente na tentativa de se moralizar todos os campos da vida social, criando maneiras de se explicar por que as coisas são como são, porque alguns têm e outros não têm - e por meio da caridade e da boa vontade em fazer o bem apenas manter girando esta lógica. De lado a lado, o que se tem é um discurso que pretende apenas explicar a si próprio.
A bola escolhe os escolhidos, e isso parece ser uma verdade de uma dureza quase lacaniana (o real do futebol é a bola, digamos). Obviamente existe o trabalho, a tática, a virtude: mas existe aquilo que está além e/ou aquém da intenção. Chame-se isso de sorte, de mandinga ou de acaso, estamos diante de um espaço imoralizável, de algo que não promete nada além do que entrega, que não retribui nenhum gesto. Mais do que um componente a mais do futebol, isto é aquilo em que ele efetivamente se estrutura, este é o seu teor. Entre dois eventos prováveis no futebol existe não uma causação ou uma moral, mas todo um esquema impossível e indizível entre coisas que são e que poderiam não ter sido. Neste espaço, situemos toda a mandinga, a zica, o azar, a maldição, a sorte, a iluminação ou qualquer outro termo que escolhamos para dar uma forma provisória ao interdito.
Encerrando este texto com outra anedota do futebol baiano, existe um áudio que circulou muito em que se dizia que o Bahia (infelizmente este é meu porto) deveria voltar a ser macumbeiro. Esta fala, para além de conter a ideia de que um time que teve personagens como Lourinho tem uma tradição entre os orixás, parece dizer algo um tanto mais profundo: é preciso voltar a encarar o futebol como um embate infinito com o sagrado, é preciso assumir que existe muita coisa que escapa do merecimento e da explicação moral. Cada bola na trave é, e seguirá sendo, uma lição sobre isso.
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