Se existem de fato os chamados deuses do futebol, a verdade é que eles odeiam as preces e oferendas ofertadas. Quando evocados, trazem consigo catástrofes, anticlímax, quase-acontecimentos, negações. Perde-se por causa dos deuses do futebol quando não se pode apontar nenhum culpado: quando a bola perfeita raspa a trave e sai, quando o movimento atlético do goleiro faz com que ele tome o gol, quando o time bem montado perde por uma única bola, quando o mais fraco quase consegue uma façanha histórica.
O futebol é um esporte amoral, já o dissemos: seus deuses só podem ser, portanto, também amorais. Quem dirá que o Real Madrid - com seu histórico de apoio fascista, de racismo e, recentemente, de hiper-investimentos - deveria ter a história que tem, deveria ter triunfado sobre times menores e mais carismáticos? Quem dirá que a seleção brasileira de 1982, ou a esforçada seleção da Croácia, ou o Brasil de Domingos da Guia e Leônidas da Silva, ou o carrossel holandês, ou Marta, Cristiane e Formiga deveriam ter perdido suas chances históricas em Copas do Mundo? Quase ninguém, naturalmente, dotado de um senso de justiça ou estética mínimos. Mas os deuses do futebol não querem saber de nada disso.
Ante a goleada suntuosa, os deuses do futebol preferem o 1 a 0 aos 45 do segundo tempo. Ante o gol do craque, os deuses preferem o do jogador medíocre. Ante a confluência dos acontecimentos, os deuses querem a fratura e a cisão. Não há narrativas possíveis para eles, não há histórias com começo, meio e fim. A potência não se converte em resultado, nem as causas serão explicação. Adeus à moral cristã: no futebol não se consegue nada simplesmente ao se merecer.
Por isso, os deuses parecem rir sempre que há um empate. Já que, diferentemente dos esportes estadunidenses ou aristocráticos, o futebol admite plenamente esta possibilidade: mais que isso, ela está dada como posição inicial do jogo. Se os times não se mexerem, se não se submeterem à contingência da bola, o jogo empatará. Este é, portanto, o único sacrifício admitido pelos deuses do futebol: ou você se expõe à catástrofe e ao caos, ou não poderá vencer jamais. Eles, no entanto, não garantem recompensa alguma àquele que está se sacrificando, apenas entregam - displicentemente - uma hipótese nas mãos de quem se dignar.
Torna-se nítido que, muito mais que um panteão de santos, os deuses do futebol desenham-se como uma enorme variedade de Exus. Ante o signo do que é - na rigidez do placar que condiciona destinos, que sela o movimento em algo acabado e que não condiz em nada com o jogo -, o futebol está erguido sobre o que poderia ter sido, o que será assim que possível, o que não foi e nem sequer seria, o que haveria de ser, toda essa multiplicidade de tempos verbais que fazem jus àquele que atira sua pedra pelas fendas do tempo-espaço.
Os deuses do futebol, portanto, riem de todos os gráficos, estatísticas, discussões sobre pênaltis e mãos na bola. Remediar os ritos é fazê-los ganhar força, como punição: não à toa, Marcelo Bielsa segue sem ganhar um único título, enquanto Di Matteo ou Kluivert trazem consigo algumas das maiores glórias do futebol. Os deuses sabem que é preciso muita coisa explicável para que algo aconteça, da mesma maneira que sabem que é necessário o inexplicável agindo simultaneamente, e no mesmo lugar. O que os deuses do futebol fazem lembrar é que não existe resultado sem corpo, porque o jogo é um objeto situado no encontro turbulento do espaço-tempo - que não cessam de, diferentemente, ser a mesma coisa.
O corpo tem seus exus individuais porque precisa mover-se, intacto, pelo inexplicável. O futebol tem seus deuses porque precisa existir como dobra na estatística, no resultado, na decisão do árbitro, nos recortes sempre despóticos em que ele se encarcera. Sim, os deuses do futebol preferem as peladas infinitas das ruas, em que ninguém sabe ao certo qual foi o resultado, em que ninguém se lembrará tão logo o jogo recomece em outra ocasião: mas os deuses precisam, sobretudo, para se provar certos e vivazes, das grandes finais de Copa, das câmeras em seus zooms, da crença que exista alguma glória. Os deuses do futebol precisam de música para dançar.
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