Escrever sobre futebol é algo tão impossível quanto escrever sobre qualquer outra coisa. Isso porque não existe, nem pode existir, nenhuma forma de coincidência entre palavra e objeto: os objetos se relacionam entre si de forma diferente a como as palavras relacionam-se entre si. Um texto, portanto, nunca é sobre algo, assim como um objeto não pode ser sobre um texto (daí as discussões sempre inférteis que comparam filmes e livros): todo texto refere-se exclusivamente a si mesmo, às suas palavras, sendo as lacunas de suas referências preenchidas por algo chamado sentido.
Por isso, aproximar-se do futebol com palavras é o mesmo que descrever uma casa em que nunca se esteve: não importa, fora do pacto realista, que o relato não se pareça com um referente real - isto é, um objeto que supostamente existe no mundo de maneira objetiva: o que importa não é que o texto produza uma casa, mas a sensação de uma casa - ou de um jogo de futebol, no nosso caso - e que induza algo comparável, mas distinto, daquilo que foi inicialmente pensado. Você pode chutar uma bola para frente sem saber aonde ela irá chegar: sua única garantia é que é pouco provável que ela vá para trás. Você pode escrever mirando em um esporte com bola, como o futebol: há aí a garantia de que não se sentirá/entenderá algo como nuvens cobrem o Estado do Arizona, provavelmente. Mas o jogo deve ser jogado - o texto deve ser escrito - e as certezas param por aí.
Daí a distância que há entre o futebol e a linguagem técnica usada para explicá-lo ou comentá-lo. Todas as piadas com termos como falso 9, pivote, box-to-box, winger, target man, jogador de contenção - além é claro de todas aquelas variantes de números como 4-1-4-1, 4-2-3-1, 3-4-3 - são justamente sobre a impossibilidade de se limitar o fluxo do jogo à sua abstração linguística/ideológica (sobre isso já se falou aqui até demais). A escrita técnica do futebol, assim como o palavrório pretensamente engajado da crônica esportiva (salvo raras exceções, como Tostão, é claro) pecam justamente por aquilo que tem fadado nossa sociedade ao gozo dos tecnocratas: a crença de que a linguagem é um meio, nunca um fim. Com isso, a pretensa limpeza do vocabulário técnico do futebol, em sua especificidade gradativa, tenta mascarar o hiato que há entre o mundo e sua experiência.
É necessário escrever pelo/no/para o futebol sabendo-se que este trajeto nunca terá fim, e que ele precisará se valer de diversas outras formas, áreas, regiões para fazer-se ressoar. A soberania da escrita de Nelson Rodrigues na crônica esportiva é a prova disso: a duração de seus textos para muito além dos jogos sobre os quais se debruçaram está justamente na sua capacidade de transformar o jogo em evento, isto é, em narrativas, personagens, valores, entidades. É preciso ficcionalizar o jogo para enunciá-lo.
A palavra está para o texto como a bola está para o jogo: ninguém dirá que um existe para o outro, nem que se esgotam mutuamente. A palavra está para o jogo como a bola está para o texto: a relação constrói-se em ato, não está dada de antemão. Metáforas, dribles, catimba, analogias: tudo isso preenche a distância impercorrível que vai da parte para o todo, do real para a ideia, e vice-versa. O que está em jogo - na escrita e na partida de futebol - são inúmeras tentativas de aproximação entre elementos infinitamente distintos. Dois textos podem ser comparados na mesma medida em que dois gols podem ser comparados: como parte de um mesmo esquema geral, como compartilhando algum elemento de saída. E apenas. Pois quem dirá que todo gol é o mesmo objeto, posto que constitui-se sempre de uma bola atravessando uma linha?
A vida do sentido e a vida do jogo são experiências corporais, e nisso compartilham a necessidade do movimento em que se colocam em relação objetos distintos (enunciados, jogadores, signos, campeonatos, etc). Quando colocadas lado-a-lado, mais um plano desta dialética está dada: o movimento entre movimentos, em que tem-se infinitas perdas (todo lance é a infinidade de lances não-feitos, toda palavra é a infinidade de palavras não escolhidas) para infinitos ganhos (todo passe é o princípio inevitável de algo, todo texto gera alguma forma de sentido em quem o lê). Pensar que a linguagem que descreva o jogo deva ser técnica e específica para explicá-lo seria submeter o jogo a uma lógica alheia tanto a ele quanto às palavras. Seria desmentir-se em ato.
Aí estão os termos de uma insondável coincidência, enfim: futebol é escrever com os pés, escrever é jogar com ideias. Que isso se sinta como for possível.
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