Pra Juan, que, exercendo o poder, não cumprimenta o imperador
Do lado de fora dos sonhos do liberalismo, em que a sociedade seria simplesmente a soma de interesses individuais, todas as relações humanas são o resultado de forças antagônicas em relação. Dialética de dialéticas, o campo social precisa ser entendido como uma disputa constante por significantes que ocupem, provisoriamente, um núcleo vazio: o poder é absolutamente nada em si - pelo menos, desde que (boa parte de nós) deixamos de crer que nossos líderes tinham algo de divino em si -, suas posições são ocupadas por demandas particulares disputadas por grupos heterogêneos, em ciclos intermitentes. Pensemos no que quer dizer a palavra família ou a palavra segurança para determinados grupos e em determinados momentos, e aí nos (des)entendemos.
O poder é um jogo. E longe do sentido que um filme ruim de Padilha poderia dar a isso - como se existisse alguém que finge fazer política para apenas jogar -, é necessário que ele seja levado a sério como jogo: deve ser, portanto, jogado, isto é, colocado sempre em relação e situação a determinadas ocasiões históricas. Um incidente particular, como um assassinato covarde ou um insulto público, pode mover toda uma roda de significantes e discursos, mudando ou reafirmando posições, fazendo com que o jogo se reinicie.
Está claro aonde se quer chegar aqui: o jogo político e o jogo futebolístico são estruturas que podem ser comparadas na maneira como o poder é obtido, performado e perdido. Os movimentos do jogo de bola - e suas estruturas de formação e deformação, de potência e de derrota - mostram e dizem muito sobre como todos os enunciados sobre o fim da experiência política são absurdos: são, eles mesmos, parte integrante de um amplo jogo. Ficar parado em campo já é jogar - jogar mal, é claro.
Por isso, o esforço deste texto será trazer - como analogia mas também como observação do poder se constituindo em ato, topologicamente - três situações em que o jogo de futebol espraia movimentos sociais de contestação e de legitimidade. Com isso, a tentativa será, no fim das contas, de redimir o peso da palavra jogo, tão surrada ao ser compreendida como simulacro, encenação ou banalidade. Diga a um torcedor que seu time é apenas parte de um jogo e você terá uma resposta contundente sobre a dimensão do ato de jogar, em campo ou na vida social - este texto só existe, afinal, porque propõe também uma disputa.
O tricampeonato, ou os termos impossíveis para uma democracia ideal
Se é possível falar de uma escola brasileira de se jogar bola, ela foi caracterizada pelos elencos do tri e levada ao grau zero pela seleção de 82. O que o Brasil fez a partir da Copa de 58 foi levar a cabo um encantamento pela bola até então apenas esboçado por outros times vencedores ou de qualidade - inclusive pelo próprio Brasil, que sucumbiu às batalhas violentas propostas por Hungria em 54 e Itália em 38, e pelo jogo pragmático do Uruguai em 50, desconsiderando a grandeza de seus próprios talentos individuais como Zizinho e Leônidas da Silva, imersos na ânsia de um time que precisava provar a si mesmo.
Em 58, contudo, o Brasil passou a pautar o que era o futebol: o jogo do controle pelo imprevisível. A imagem paradigmática de Didi, o príncipe etíope, a pegar a bola nas redes e caminhar lentamente até o meio de campo, desconsiderando a real possibilidade de o Brasil mais uma vez perder uma final, é o símbolo desta mudança de postura: ali se nota como retomar a posse da bola, colocá-la sob o braço, significava ter a chance de se fazer algo diferente. Só com a bola era possível provar a si mesmo, exercer sua soberania sobre o campo.
E então o Brasil foi soberano tanto quanto pôde ter a bola. 58, 62 e 70 - permeados pelas retumbantes exceções de 66 (com Pelé lesionado e uma enorme entressafra de jogadores) e 74 (com uma Holanda que queria, mais do que aquele Brasil, ter a bola) - foram Copas em que a seleção brasileira, por meio de dribles famosos e inventados, de inversões de jogo, de um controle absoluto da partida, pôde existir como argumento sobre a relação entre ter a bola e ter o jogo, isto é, sobre estar no centro e poder ser o poder, repartido em justiça a partir de gestos justos: o Brasil vencia porque tinha que vencer, ou melhor, porque parecia não ter como não vencer.
Mas ncravadas em um país que se desmontava, aquelas seleções eram um argumento contra seu próprio modelo de poder. Em campo, o sonho de uma democracia ideal (alguns diriam racial) fazia-se ver em times que pareciam dizer o óbvio: basta estar no campo para estar no jogo, basta ter a bola para se fazer o gol: a bola é o poder. Nisso entende-se como a esquerda brasileira, oposta ideologicamente ao envolvimento do nacionalismo reacionário na seleção, pôde entrar de cabeça e assumir a contradição viva daquele time: ele era a encarnação de um projeto que a ela pertencia e daria a vida. Era uma democracia ideal em movimento, em que o poder emanava naturalmente e, como o fluxo que a palavra evoca, derramava-se pelo campo.
Está claro que a alegria é a prova dos 9, como Oswald sugeriu. A história do Tri é parte insuperável da trajetória das propostas de civilização vindas do Brasil, sempre lidas entre o irreal daquilo que é visto como mero jogo ou representação e o mais-que-real que vê o jogo como algo além da representação e da política. De lado a lado, perde-se a potência da passagem: nem entretenimento, nem estética pura. A derrota da seleção de 82, - a última seleção brasileira que quis ter a bola para poder ter o poder - para o pragmático e opaco time da Itália foi a pá de cal em qualquer leitura apressada que pretendesse ver no futebol brasileiro uma espécie de natureza de sua sociedade, um dia fadada a vencer tanto quanto suas seleções: nem mesmo em campo isso pôde ocorrer, justamente porque a bola não era, ao cabo, o significante definitivo da vitória.
O modelo civilizacional do futebol brasileiro deve ser visto como aquilo que era: jogo, isto é, a mais complexa lógica de estruturação da vida, em seus movimentos contínuos e heterogêneos. Ele não se esgotou em campo, porque moveu afetos e promoveu sentido estético e ético à vida social; mas ele não modificou as bases da vida social, pois, enquanto se comemorava a Copa de 70, pessoas ainda morriam de fome ou eram assassinadas por grupos de extermínio no Brasil. Se aqueles times pareceram dar vida a uma democracia ideal em campo, deram também a prova de que - ao cabo dos anos e empilhadas as derrotas - eram na verdade apenas um modelo particular de poder, configurado em um momento histórico irrepetível. Justamente por isso, tanto a vida social quanto a vida do futebol nunca mais se esforçariam para comprovar o argumento dos elencos do Tri: a justiça não seria nunca mais vista como uma consequência natural do que quer que fosse, por aqueles que, claro, desejassem - como Sócrates, estrela de 82 - alguma forma verdadeira de justiça.
As grandes discussões táticas sobre futebol neste século se concentraram ou passaram sobre a questão da posse de bola. Escanteio curto, dar/não dar chutão, jogar com linhas avançadas, retomar rapidamente a posse por meio de pressão. Gradativamente, a partir da organização tática das equipes - sintetizada pelo mote não existe mais bobo no futebol - surgiu um consenso, a partir da eminência de treinadores como Lavolpi ou Bielsa, de que ter a posse de bola sob controle significaria ter o jogo nas mãos.
Note-se que ter a posse de bola não significa ter a bola. Ter a bola, como fazia Didi ou Garrincha, era pautar o jogo a partir do ritmo dos gestos, do pensar traduzido em jogo - induzir o adversário ao ritmo do pesadelo, como fazia o divino Ademir da Guia. Ter a posse da bola, contudo, significa muito mais tomar posse do campo do que da bola em si: é fazer a bola circular livremente por todos os espaços em que se possa ter um jogador que está do seu lado, enlaçar o adversário a partir da ocupação. No jogo da posse de bola, o que importa é a tentativa de atrelar o tempo ao espaço, colocar uma coisa como consequência imediata da outra.
O surgimento de Guardiola como pai de um modelo paradigmático de jogo - já falamos disso aqui - foi o momento em que a discussão sobre a posse de bola deixou de existir para virar verdade protocolar, a ser repetida como síndrome de viralatas por aqueles que não praticavam - por motivos que vão da falta de preparação física às condições ruins de gramado - aquele jogo. O apogeu da estagnação na discussão foi o jogo Santos x Barcelona, pelo mundial de clubes de 2011, em que se viu um time campeão da América e com o melhor jogador jovem do mundo ser trucidado por um time que trocava passes para para passar o tempo (espaço) de maneira confortável, tomando o campo para si. Numa comparação justa, aquele jogo foi o Consenso de Washington do futebol, o instante em que todas as discussões sobre futebol se tornaram a constatação de que aquele modelo de jogo era inevitável.
Talvez o que tenha levado aquele time a provocar tamanho consenso em analistas deslumbrados tenha sido o fato que seu modelo de jogo era, em si, o do consenso. Ao aproximar as linhas, propor tabelas curtas, tentar limitar o espaço para o acaso e para os interditos, o jogo da posse de bola de Guardiola parecia propor os termos de um controle inevitável do jogo por aquele que melhor soubesse ocupar seu tempo nele. Aquele time era uma equipe sem gestos nítidos, sem erros crassos, sem direito ao gol feio ou ao chute desesperado: era o jogo da tecnocracia, da otimização dos espaços, da especialização, da divisão de tarefas. Um jogo sem resto, portanto.
O jogo da posse bola deu vazão e forma aos sonhos ilustrados de sociedades de consenso, em que a divisão dos espaços e a busca pelo próprio pautariam o sentido da democracia - por isso representativa, em que cada qual conseguisse no campo político aquilo que lhe pertenceria, como um carro, por direito. Sem embates físicos, sem margem para qualquer forma de brutalidade, os times de Guardiola e seus discípulos na mídia e no jogo foram (e ainda têm sido) a emulação de um modelo em que o poder poderia se dar sem sustos, sem conflitos, a partir da crença de que não existiria núcleo para o poder porque o próprio poder não existiria: cada qual comporia a vida social partir de si, no instante em que assumiria a posição daquilo que lhe é próprio.
O consenso do consenso permanece como discurso, mas, assim como o modelo do Tri, mostrou-se gradativamente finito. Neste discurso, cuja base está assentada justamente na crença de que a influência do tempo seria nula sobre o jogo, esta é uma dupla derrota. A soberania absoluta de Guardiola faz parte do passado como a soberania do liberalismo de Tatcher - que odiava futebol - também faz. Ainda que muitos continuem insistindo na atualidade irreversível de um modelo de jogo que quer justamente suprimir o jogo. Ao jogá-lo.
O jogo de transição, ou a sociedade contra o Estado
A crença de que o jogo da posse de bola seria a única expressão propriamente moderna do esporte gerou, no campo político próprio ao futebol, um grande número de movimentações discursivas. De lado a lado, apesar dos avisos dos analistas que tentavam convencer o mundo de que o jogo de futebol tinha chegado à sua fase de apogeu, diversos times, técnicos e jogadores tiveram que repensar sua visão de jogo a partir das ideias de soberania criadas pela hegemonia da posse de bola. O jogo de transição foi o grande resultado dessa busca por uma resposta, isto é, uma tentativa de reocupar o núcleo do poder dentro do jogo.
Pode-se caracterizar o jogo de transição por um esforço em dar a bola ao adversário, o que de saída já deixa claro como essa visão do futebol tira da bola o núcleo do fazer. Em seguida, conclui-se que o jogo de transição funciona melhor justamente contra times que querem deter a posse de bola, entregando-a sem sustos. Portanto, temos aí uma formação responsiva às dinâmicas de duas das formas hegemônicas de se jogar: a disputa por um esquema de poder está dada.
Ao entregar a bola para o adversário, treinadores como Mourinho e Simeone pretendem justamente que os Guardiolas façam o seu jogo, tenham a bola e se imaginem exercendo plenamente o poder em seus termos imaginados: imaginem-se pautando onde está o núcleo do poder. Essa é a deixa para que o jogo de transição consiga retomar a bola por instantes e, numa fulguração simples e horizontal, buscar a meta, desmentir a posse de bola com o resultado obtido sem qualquer pretensão de se fazer uma moralização do jogo. Não à toa, técnicos do jogo de posse constantemente acusam técnicos da transição em serem "antifutebol" ou em travar o jogo: para quem pensa que propõe a maneira única atual de se jogar futebol, talvez isso faça sentido. Mas a prova oferecida pelo jogo de transição é de que o futebol não tem fim, porque a história não tem fim: a graça do futebol - por isso tão próximo da vida social - é a possibilidade de se vencer de formas antagônicas em seus métodos, com valores atualizados em contextos novos.
Desta forma, o jogo de transição aproxima-se, estruturalmente, daquilo que Pierre Clastres chamou de sociedades contra o Estado. Descrevendo determinados grupos indígenas, Clastres observou como era possível que grupos sociais esvaziassem simbolicamente o núcleo do poder a ponto de viverem constante e necessariamente contra ele: mantém-se um líder que, literalmente, fala sozinho, para que o mínimo lastro social seja obtido, e então vive-se ao redor dele. O núcleo do poder, neste esquema, está entregue ao outro como contraponto à liberdade de formas da vida social, que choca-se contra esta figura. Note-se que se está, aqui, muito distante do sonho liberal de reduzir o governo a uma função moderadora: as sociedades contra o Estado são um amplo pacto social pela proliferação das formas de vida, sendo portanto pensadas para muito além do indivíduo (em sociedades em que o indivíduo sequer existe como conceito);
Ora, o jogo de transição passa justamente por isso. O que fez Mourinho em 2012 foi justamente deixar que Guardiola falasse sozinho, em alto e bom som, sobre quão superior era seu futebol, para então ser campeão europeu passando sobre ele. Foi a primeira contrarresposta ao jogo da posse de bola. Aquele time do Chelsea, repleto de jogadores medianos, deixou que o Barcelona do indefectível Messi jogasse, ocupasse espaços, passasse o tempo que quisesse com a bola: a ponto de o jogo acabar, com a derrota do time catalão. Em uma argumentação contundente, Mourinho fez com que Guardiola reaprendesse que o núcleo do poder é um lugar vazio, e que a ilusão de ocupá-lo não seria garantidora de nenhum tipo de resultado: é possível estar no trono sem que isso signifique, em determinado contexto social, nada além do fato de que... se está no trono, até que não se esteja mais.
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