Notas sobre Futebol e Estética (14) - O Narrador

Walter Benjamin - esse é um bom começo de texto - no seu ensaio O Narrador contou-nos que a arte de narrar, antes da ascensão do romance moderno - mas também encrustada nele -, diz respeito à cristalização e reformulação de uma espécie de saber popular difuso, esparramado ao longo do tempo e do espaço. O conto moralizante, o refrão ou o ditado popular são resultantes e portadores de feixes da experiência social, assumida até então como algo potencialmente transmissível e digno de ciência, de saber: no ditado popular não interessa a comprovação, posto que ela está dada como pressuposto do que é dito, pelo simples fato de ainda ser dito. A síntese que o ditado popular carrega consigo, atravessando ideologias, mundos, referentes, calendários, é a prova de que seu sentido está contido no corpo daquele que ouve e daquele que diz, isto é, abre espaço no mundo com ajuda da benevolência do entendimento que se pretende saber.

O futebol também tem seus narradores, e sua origens são igualmente arcaicas e enraizadas no corpo social. Não estamos aqui a falar dos cronistas (isto ficou para outro texto de nossa coletânea): a narração do jogo, oriunda das ondas do rádio e que, como o ditado popular ou o conto didático, permanece marcando a experiência moderna do futebol - apesar de seus milhares de replays, câmeras em ângulos diversos, zooms, linhas computadorizadas e microfones potentes - é também um testemunho remanescente de uma época em que a relação entre o futebol e os sentidos era similar àquela da vivência e do relato da comunidade, isto é, baseada na fabulação da palavra, na imaginação, na projeção não amparada na ideia de que uma imagem seria uma resposta definitiva ao que quer que seja discutido - como ocorre com os defensores mais ferrenhos do árbitro de vídeo hoje.

Com o advento da imagem ao vivo no futebol, a narração permaneceu com seu lugar marcado de presença de um corpo que diz o visível - com a televisão, enfim visível para todos. Estamos a falar, assim, de um grau de defasagem entre sentidos. Ao mesmo tempo em que se vê algo, tem-se uma voz que se justapõe ao visto, narrativizando, motivando, interpretando, entonando o jogo. O futebol surge, portanto, com um grau a mais de pessoalidade a partir da figura do narrador, uma figura do saber e do ritmo - não à toa muitas pessoas preferem ou abominam ver o jogo na televisão, valendo-se da narração do rádio. O narrador do jogo é a prova de que não se pode transmitir o que quer que seja sem o testemunho de uma experiência - algo que os cortes de câmera e os drones parecem querer esconder: o ritmo impresso pela voz é testemunho de um corpo. Mais ainda: é testemunho de um corpo diante de corpos: não à toa, o narrador quase sempre precisa estar presente no estádio onde ocorre o evento que quer reportar.

No Brasil - também em toda América do Sul e na Itália - a relação entre narração e saber popular parece ainda mais marcante do que em outros países. Vendo-se narrações inglesas, por exemplo, tem-se um tipo de comentário sobre o jogo, muito mais do que efetivamente uma narração: as falas simplesmente tentam constatar o que houve, como uma tautologia. Nos países de cultura latina mais forte, essa relação assume planos muito mais marcantes, defasados: narrar e comentar o jogo significa incumbir-se de motivá-lo, significa enunciar saberes sobre o visto, compartilhar o real uma vez mais como potência de um saber. O futebol é uma caixinha de surpresas, clássico é clássico e vice-versa, pênalti é loteria, quem não faz, toma são frases que, ao serem evocadas durante uma partida, trazem consigo toda uma historicidade própria do jogo, transformam em tempo real o acontecimento em genealogia, dão testemunho de eventos que já aconteceram e que, de alguma forma, seguem acontecendo na pronúncia destas palavras. Isto é realmente significativo: o narrador latino é francamente benjaminiano, e resiste encravado no mundo desnarrativizado da tecnologia.

Com isso mostra-se um ponto crucial: as imagens de torcedores no estádio com rádios colados ao ouvido são testemunhos de que o nexo social ainda subjaz à razão moderna como palavra. O ímpeto da narrativa é a vontade de pessoalidade e corporalidade do mundo, e nisso nota-se como narradores de futebol precisam de bordões, de entonações particulares, de birras próprias, de especulações sobre seu time do coração para que as pessoas possam amá-los ou odiá-los enquanto o jogo acontece sob o crivo de sua voz. Apesar e por causa dela. É desta forma que o saber popular traduz-se em corpo, e vice-versa. 

Por isso torna-se um tanto quanto instigante pensar - e aqui encerramos nosso conto - no fato de que todos nossos narradores são identificáveis como portadores de vozes masculinas. Sendo a voz o campo que, historicamente, foi legado à mulher como espaço do encantamento, do convencimento e da desrazão - vide musas, sereias, coros, castrati, pítias -, o futebol é um espaço raríssimo para a voz masculina como centro. Uma hipótese - para além do campo masculino óbvio que o esporte tem - pode estar justamente no fato de que a narração do futebol é portadora de uma razão sensível, ou de uma sensibilidade racional: está ligada a um campo do saber popular, que é historicamente masculinizado em sua enunciação. Nisto notamos os limites de nosso próprio nexo social, exatamente no instante em que constatamos como ele nos é imprescindível para construirmos eventos a partir de acontecimentos.

O narrador carrega um saber, um saber carrega um povo, um povo carrega seus narradores. Não é fácil visualizar um mundo - ao menos dentro de nossa cultura extremamente corporalizada - em que se quebraria este ciclo - o que não significa simplesmente constatá-lo, como dissemos. Narrador e futebol são marcas de uma corporalidade que centralizamos como vínculo do saber e da experiência: por isso cá estamos, a disputar, com nossa voz, uma posição ainda hoje neste tempo-espaço. A modernidade é apenas um parágrafo daquilo que se prossegue a contar.



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