Notas sobre Futebol e Estética (15) - Todo Futebol é Feminino

Diante da imbecilidade reacionária que se manifesta como resposta às crescentes demandas por novas formas e espaços de se viver o futebol, não respondamos nada. Não se pode jogar um esporte cuja regra pertence, alegadamente, a um dos lados. Por isso, antes de tentarmos usar termos como inclusão e representatividade a nosso favor, cabe pensar muito mais em quais sistemas estamos tentando nos incluir ou representar, e se vale a pena reafirmá-los na tentativa de nossa presença.

Isto, aqui, neste projeto, significa não tentar encontrar uma política representativa que dê conta da infinidade de formas que existem de se viver o futebol - uma tarefa obviamente infinita: significa dobrá-lo topológica, estética e ontologicamente sobre si mesmo, ver no próprio jogo a vida de sua vida, sempre coberta pela espuma dos dias. (Mas sim, está claro que a primeira saída não é de todo vã: abdicar de jogar o jogo da democracia falida seria deixá-la falir ainda mais).

Com este tipo de declaração de princípios, queria apenas me adiantar a eventuais críticas que pudessem surgir sobre a necessidade e "utilidade" da discussão que se está aqui a sugerir. A estética não é o campo minado da política em que se segrega, cá no futebol, a cada dia, recursos, espaço, oportunidades a dezenas de milhares de corpos rotulados como femininos, unicamente por serem rotulados como femininos. Não: como uma lembrança de infância que emerge do cheiro de uma fruta, a estética existe para lembrar que o mundo vive materialmente também de outras formas, e que estas formas muitas vezes depõem contra o campo das discussões políticas mais óbvias ou objetivas. É preciso plantar os pomares e conservar as árvores de pé, mas é preciso também lembrar que a experiência de uma fruta é o que nos faz ter certeza de que este esforço vale, ao cabo ou a princípio, a pena.

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A história do futebol não é a história da virilidade: no jogo, a virilidade sempre pôde muito pouco. Iniciado como irmão gêmeo do rúgbi, o futebol quis ser outra coisa, dispensar as fórmulas de cavalheiros, o contato corporal incessante, a necessidade de exibição de corpos pré-formados unicamente para aquilo. Quanto menos provável o corpo, melhor ele se sai no futebol. Que fariam um Garrincha, em suas pernas impossíveis, ou um Romário, em seu 1,67m, no esporte intitulado de alto rendimento? Estariam fadados ao mundo do resto, é claro, do baixo rendimento. No futebol, no entanto, consagraram-se ao longo dos anos jogadores fisicamente tão distintos como Maradona, Didi, Manga, Jorge Campos, Formiga, e não há modelo algum que explique esta vida das formas. (Inclusive, torna-se significativo notar como a polarização Messi - Cristiano Ronaldo é, hoje, também uma polarização estética, de projetos de corpo e gestualidade praticamente opostos.)

O futebol traz consigo este paradoxo: consagrou-se como fundação do campo social moderno - portanto, masculino - ao mesmo tempo em que não cessou de trazer consigo formas corporais e gestuais que provocam um dissenso no seio desta ordem. A ideologia é forte a ponto de ter conseguido esconder, anos e anos a fio, no corpo de seus reis, a própria imagem do corpo de seus reis. Note-se então como a Inglaterra, ao se atrelar à tradição de um futebol rural, arcaico e violento tornou-se, a despeito de ter inventado o esporte, uma margem do futebol até promulgação da lei Bosman, tendo uma seleção pouco gloriosa até os dias de hoje: a escolha por honrar uma linhagem masculinizada - portanto, "física" e combativa - fez com que os ingleses, quando não se agrediam nos arredores dos estádios, acabassem aplaudindo jogadores como Ronaldinho Gaúcho e Eusébio.

Criado como esporte de cavalheiros, mas consagrado gradativamente - desde as primeiras seleções de Uruguai e Argentina dos anos 1920 - como esporte do engano e do erro, o futebol conta a história de uma deriva incessante: a do corpo no espaço. Como já dito por aqui, o fato de se tratar de um esporte não-vetorial, isto é, sem direção pré-determinada, fez com que dinâmicas do corpo fossem reconstruídas como uma forma de burlar a rigidez da lei: Garrincha, claro, é o grau zero disso. A introdução do drible, do caos, do fingimento como parte do jogo - algo que vem, digamos sem medo, como grande contribuição latinoamericana para o mundo - significou também a transformação do futebol como esporte da não-repetição por excelência - não se dá o mesmo drible 5 vezes seguidas, não se cobra a mesma jogada ensaiada 8 vezes - nisso contrastando frontalmente com os demais esportes profissionais.

O corpo olímpico não é, portanto, o corpo do futebol, com seu tipo ariano que reinava na praça do mercado ateniense como tradução de um ideal de sociedade. O corpo do futebol é, potencialmente, qualquer um. O gestual do futebol - da postura de Sócrates à frieza de Romário e à explosão de Maradona - também raramente se repete mesmo entre aqueles que alcançam igual destaque ali. Não há formas prontas, não há moral, não há perfeição: o futebol goza no real: um jogo é sempre mais do que a soma de seus jogadores, mais do que a soma de seus lances: é o encontro daquilo que poderia ter sido com aquilo que não foi, resultando naquilo que ocorreu: o futebol é 1 + algo.

Nisso entendemos onde vive o corpo dos jogadores de futebol: no resto do sistema simbólico que tenta monopolizar e direcionar o próprio jogo. Diante das estruturas simbólicas que erguem estádios modernos, criam hierarquias, segregam pessoas, existe um resto: e o resto é o próprio jogo, em sua dinâmica interna, real. Gozando no masculino - na ideia de poder e ordem -, o futebol goza também no feminino, naquilo que é sem nome fixo, sem ordenação rígida, sem discurso pré-formado, sem local determinado para o corpo. O jogo é linguagem e não-linguagem em sobredeterminação, por isso pode perdurar e se adaptar a contextos, ideias, pessoas incessantemente.

Não é exagerado dizer, assim, que todo futebol é feminino. E este paradoxo existir no seio das estruturas mais masculinizadas da sociedade torna um tanto mais interessante esta constatação: todo desejo de ordem produz um resto simbólico, e no futebol este resto está justamente no centro: nos corpos que não temem por um único segundo o julgamento pelo absurdo, pela desrazão ou pela afetação de um movimento imprevisto, de uma quebra de ritmo, de um meneio malicioso. A contrapartida de não se assumir esta verdade do corpo no jogo parece ser, justamente, o enrijecimento das estruturas simbólicas para que se excluam justamente os modos-de-ser e as corporalidades tidos como desviantes naquilo que cerca o futebol: o corpo se manterá, então, como um segredo escondido no real.

O medo da presença do feminino no jogo é o medo de que se revele o fato de que, afinal, o jogo não nos pertence, nem como indivíduos, nem como grupo. Revelar o feminino do futebol significaria, para muitos, o risco de abdicar de uma (falsa) posição de controle sobre o real e sobre o possível: para estes, a bola é apenas uma abstração, um empecilho para que duas equipes se destruam mutuamente. Maldosa dialética: é a existência intransponível do feminino que faz com que possam perdurar por tanto tempo as estruturas rígidas do que seria masculino, já que a defasagem do real é o que faz com que as estruturas possam sempre se readaptar.


Neste ponto já entendemos que não há um jogo de oposições aqui: nossa constatação é sobre, justamente, o fato de que as estruturas simbólicas são sempre insustentáveis. Por isso, antes de reiterar uma dicotomia afirmando a valia de seus dois lados, um projeto possível é pensar como estamos lidando com termos interdependentes, que existem em um momento particular de nossa história e podem deixar de existir em outro, tornados inoperantes. Pelé sagrou-se rei - posição absoluta do poder soberano masculino - a partir de seu corpo desviante, insinuante, imprevisível, deslocado da ordem. Já o deslocamento que é proposto pela ideia de que alguém identificado como mulher possa ameaçar esta posição simbólica parece, por outro lado, reiterar o discurso de uma ordem que abstrai a vida dos corpos - que tenta ou desdenhar deste fato, ou ignorá-lo ruidosamente. 

Esta ideia, antes de uma aporia, é justamente uma porta de saída. Se é por sempre ter sido feminino que o futebol conseguiu perdurar em sua masculinidade - em seu movimento de ocultação do vazio -, o movimento oposto também vive como latência do mesmo processo: é o feminino que, no fim das contas, faz com que o futebol simplesmente exista: é pelo feminino do corpo que as estruturas falam, é pelo real que se move o mundo simbólico. 

Enxergar esta dependência, esta vida feminina do corpo de Marta ou de Pelé, parece ser, sim, uma posição política estratégica para se deixar nítido o absurdo do discurso pré-formado sobre o lugar do jogo, sobre o impossível corpo sem corpo dos jogadores. O futebol já se curvou à América Latina, esta mulher, algumas vezes: justamente por observar que, lá, estava a própria verdade escondida da lei que se imaginava então conhecer à exaustão. Cabe a nós, portanto, lançar luz e mais luz aos paradoxos, ao invés de reiterar a oposição com outra oposição: é necessário, num drible de corpo, buscar sempre a contradição da contradição. Somos seres reais: sejamos - como quando jogamos - um pouco honestos conosco.

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