A intenção deste texto talvez seja lançar um olhar para um infamiliar: algo que, de tão intensa presença, tenha se feito esquecer ao longo dos tempos - e quando reaparece, surge na forma de espanto. Ora, é evidente - e sobretudo óbvio no conjunto destes textos - que o futebol é uma arte do corpo em presença. Será necessário, então, dar alguns passos para além desta constatação: observar que o jogo faz parte de um mundo de afecções que encontram o próprio corpo como campo. Deixemos isso um pouco mais claro.
Do futebol foi feito um terreno social consciente e ostensivamente masculinizado: ele está, portanto, inserido numa lógica de aproximação interpessoal baseada na abstração do corpo. Neste processo, funda-se um paradoxo insuportável - e naturalizado ao ponto de tornar-se invisível - em que se pode falar de uma arte do corpo sem citar o corpo - o discurso da honra, o clubismo cego, o tatiquês do futebol convergem neste ponto assim como os códigos morais mais rudimentares e o neoliberalismo também encontram-se aí. (Sim, a dobra da racionalização da vida pública e da legislação supostamente neutra estão, além de tudo, nesta encruzilhada. Talvez grande parte do interesse no futebol esteja neste seu ponto de dialética impossível, enfim.)
Mas se disséssemos que o futebol tem, justamente por sua vida corporal, um veio inerentemente erótico, o que restaria da função social mais tacanha onde se tem tentado relegá-lo?
Comecemos então com uma ideia de erótico. O conceito em jogo - que aqui funda-se numa absoluta orelhada (a orelha é uma parte do corpo) - coloca a experiência física como uma experiência afetiva. Além do sentido corrente do termo - "afetivo" como sentimental -, o que se quer dizer é justamente como o corpo é um ponto de afetação, isto é, do eco de outras presenças, outros movimentos. Existe nisso uma lógica própria de racionalidade - do jogo e não só - como a produção de ideias sobre o mundo e sobre o outro/si como resultado de uma sensação ou impressão física. Pensar com a pele.
Neste encontro entre carne e ideia funda-se, logo notamos, a própria psicanálise - justamente onde se funda o futebol. Pensar o corpo como matriz de pulsões, que escapam ao mundo ordenado e à moral da sociedade, é pensar em sua inerente erotização - algo que justamente foi e, pasme, ainda é, alvo das críticas conservadoras sobre o que seria a "erotização da infância e da vida social": note-se uma vez mais a tentativa de abstrair o corpo das relações interpessoais, enfim. Se o corpo é fonte incessante de pulsões e se o futebol é uma relação interpessoal pautada no corpo, como seria possível conceber o futebol sem um espaço do/para o erotismo?
Observemos: grande parte do prazer do futebol pode ser chamado de gozo. O gol é o gozo - no grito que extrapola a língua, fazendo-se excesso, na comemoração que exige o toque e que promove a aproximação; o drible é o gozo - na constatação da finitude do alcance e da potência, revelando-se uma vez mais como necessidade de algo a mais, na materialização do corpo como algo transponível e permeável; o título é o gozo - na revelação de que a completude sucede a incompletude outra vez, posto que a temporada sempre recomeça: ninguém será para sempre campeão de nada.
E é exatamente neste ponto em que o futebol mostra-se como gozo que ele foi atacado, por anos a fio, como alienação. O futebol aliena como o corpo aliena: isto é, escapa aos esquema sociais e à prolixidade possível da língua, ao pavimento feio da ideologia, fazendo-se um a mais. É ideológico e mais do que isso. Como a psicologia reformou as metafísicas do pensamento impondo-lhes um corpo, assim o futebol fez com a leitura política mais apressada que tentou ligá-lo, por exemplo nos anos 1970, a determinada ideologia ou campo social que tentava se aproveitar dele. Seria como forçar a pele a parar de desejar, como forçar os olhos a deixar de ver formas: o futebol é irresumível a esquemas ideológicos justamente como/porque o corpo dali também sempre escapará por meio das pulsões. Uma sociedade que diz ordem - e que tenta responder a uma ordem com outro desejo de ordem - reprimirá sempre o que lhe parece extrapolar a coerência interna.
Há muito de desejo em deixar-se ver em movimento. Há ainda mais no intuito de se colocar naquela posição, para poder ver. O excesso do discurso proposto pelo futebol é a posicionalidade que insistimos em procurar, a relação necessária entre o outro e o si mesmo: não há penso logo existo, como no racionalismo, mas me relaciono logo posso vir a existir. A perversidade do placar - justamente a perversidade da lei - está em resumir a cenas, a lances importantes, a intenções aquilo que só existe por ser relação, posição, em um mundo sem terceiro excluído. Uma jogada é o resultado da relação entre corpos que se colocam em posição com relação a outros corpos; um jogo inteiro é ele próprio uma sociedade vista de relance.
E por ser sociedade, seu nexo primeiro - ou último - é a afetação. Por isso, o futebol causa interesse - entre jogador e jogador, público e jogador, público e público - na mesma medida em que produz a vontade de ver, de ouvir, de sentir, de se colocar: a experiência do estádio atrai e é insubstituível por isso, assim como jogar nunca será compensado com pensar no jogo. Que se ouça um jogador falar sobre a diferença entre a partida com ou sem torcida; que se ouça o saudosismo dos velhos estádios, soterrados para virar arenas. Para o futebol, o desejo é princípio, fim e meio: é, como a pulsão para o corpo, amplitude e limite. Todos queremos sentir o jogo, e não apenas compreendê-lo - aqui o futebol também converge com a experiência da arte.
Contra a pornografia do jogo, a mercantilização que, à força, quer produzir a ilusão de um conjunto de efeitos sem causa - luzes coloridas, jogos de câmeras em zoom, ritmos quebrados -, e contra o cinismo da masculinização do campo social - já falamos sobre isso por aqui -, a grande resposta está justamente no erotismo do futebol, que mostra como a infinitude da partida se dá em/por suas incontáveis zonas erógenas. Uma frase utilizada em discursos ralos de bravura em campo - o futebol é um esporte de contato! - mostra-se, como um infamiliar, portadora justamente desta ideia que se está aqui a defender: sim, é um esporte de contato: só jogamos porque sabemos amar.
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