Notas sobre Futebol e Estética (17) - Da ingenuidade corrompida


O aclamado Futebol a Sol e Sombra, de Eduardo Galeano, nunca me pareceu um livro com o melhor dos percursos críticos. Inicialmente, sua premissa é clara e bem construída, as figuras históricas dos anos 1930, 40 e 50 ganham ar mitológico, e as dos 60, 70 e 80 assumem saboroso contorno de polêmica, beleza e disputa. A narrativa política é clara, e seu caráter mais nítido se dá pelo triunfo da Revolução Cubana, cuja vitalidade encontra paralelo com a realização das Copas do Mundo. Mais ao fim, contudo, o livro parece se arrastar sem rumo, talvez por uma pressão de editores ou do próprio autor em completar seu arco narrativo com a novas Copas que vão se sucedendo à publicação da obra - já não havendo mais Revolução ou Guerra Fria para se contextualizar o jogo.

Com isso, Futebol a Sol e Sombra torna-se um relato amargo, uma espécie de trajeto que vai do encantamento e da ingenuidade para a mercantilização e destruição gradativas do jogo. Não há redenção possível: o fim do século XX inauguraria a era do pós-futebol - e qualquer paralelo com uma ideia de pós-história, isto é, do fim da narratividade, não parece aqui descabida. Galeano parece partir de uma adulação ao jogo em sua potência política à constatação de que a forma mercantilizada do esporte já não guardaria nenhuma possibilidade revolucionária real: o espelho jogo/sociedade continua vigente, refletindo agora um rosto pútrido e cadavérico de um mundo sem encantamento possível. Por isso, encerramos o livro e concluímos: é isso? Estamos a ler - a constatar - a elegia do futebol, o seu adeus? Seu fascínio estético é uma reminiscência arcaica, como a bola e o gramado ainda são? Gostar de futebol parece ter se tornado, então, uma posição política conservadora.



É fácil, e lógico, entender de onde surge o labirinto de Galeano em seu livro. A cultura futebolística do Rio de la Plata é fundada em elementos que, a outros países e contextos, soam, na melhor das hipóteses, obsoletos. Cultura de bairro - como se nota pela desproporção entre os tamanhos de Buenos Aires e Montevideo e seu número de times de futebol  -, coletivização, apego à história e à seleção nacional são fundamentos invejáveis, inclusive aos brasileiros, da vida futebolística erguida ao sul. As aventuras míticas do futebol sulamericano se deram nessa base, e a impuseram em seus termos ao mundo, seja nas Copas e Olimpíada do Uruguai, na seleção de 1940 da Argentina, no enfileiramento de títulos do Independiente, na batalha campal entre Racing e Celtic, na construção dos colossos hoje quixotescos de Nacional e, sobretudo, Peñarol. Essas coisas que, como o telégrafo ou o gramofone, parecem hoje aos incautos enormes quinquilharias sem destino, depondo contra si mesmas por sua enorme forma material.

Como brasileiro e como baiano, imagino Galeano a observar o surgimento de um futebol sem milonga, sem apego a origem e forma, sem bairro, enfim. A narrativa do supermercado de Boedo, ponto alto do livro do uruguaio, é uma grande celebração - ainda na fase "encantada" da obra - da determinação que a origem deveria impor ao jogo. Mas nosso escritor morre antes que o San Lorenzo tenha conseguido retornar a seu bairro, reconquistando o terreno espoliado pelo enorme supermercado - nos dois sentidos da palavra.

Está claro, assim, que o dilema do desencanto de Galeano é muito similar ao paradoxo brasileiro do jogo bonito, do arcaísmo de Garrincha, da derrota em 1982: o não-lugar do jogo inventivo diante de sua racionalização pelo dinheiro. Esse dilema - que é também o do Cinema Novo, o da Tropicália, o da Semana de 22 - é o da dobra em que se poderia construir algum tipo de civilização feliz, que respondesse, em seus termos, às civilizações desalmadas e frias do norte. No futebol, essas civilizações - como o próprio Galeano aponta por lá, e nosso Wisnik por aqui - transformaram o futebol em commodity, em relação trabalho x tempo, muscularizando e taticalizando o que se dá dentro do campo. Fomos recolonizados, nossa ingenuidade foi dilapidada.


Mas talvez estejamos em uma falsa alternativa infernal: não uma encruzilhada - suspensão da oposição em prol da relação -, mas um dilema - em que os lados tentam subtrair-se um ao outro. O problema de imaginar que o futebol tenha sido corrompido passa por dois principais pontos de contestação: o primeiro seria assumir que o lado de fora do jogo tenha suprimido completamente o lado de dentro, privando de qualquer legitimidade a experiência estética de ver, jogar e viver o futebol; o segundo, seria acreditar que o futebol tenha sido, em algum momento da história, propriamente incorruptível, ingênuo, puro.

Sobre o primeiro ponto, muito se falou nestes textos até agora. Em suma, parece um tanto absurdo imaginar que qualquer elemento econômico ou político tenha a capacidade de suprimir a radical materialidade do jogo de bola: justamente, isso passa por se afastar de qualquer definição reducionista de materialismo em que o corpo é uma abstração necessária para a história. Para o futebol que vige no agora, troquemos a metafísica pela ontologia. É isto que aqui se tem - como os pecadores dantescos que eternamente lutam uns com os outros dentro de um rio - defendido.

Passemos então para o segundo ponto - que é pressuposto do primeiro, é claro. O discurso sobre a ingenuidade corrompida do jogo parece similar àquele que via/vê nas sociedades "arcaicas" alguma forma de pureza a ser retomada. Evidentemente, esses discursos tendem a originar formas de nacionalismo que em nada são ingênuas. Não é dado surpreendente que o futebol competitivo surge - como tudo no século XX - com recorte de raça e classe muito bem estabelecido: a afetividade deve, portanto, se construir também ao redor disso, e também depor neste sentido. Pensar nos primórdios do futebol é pensar nos primórdios da complexa relação de violência que o atravessa e se reatualiza por meio dele, encarnada na forma daqueles que jogam, nos nomes que se admitem naquele espaço, nas figuras que financiam os locais, uniformes, competições. Nos olhos que ignoram ou observam.

O encantamento puro é apenas a própria distância, ou a própria presença. Mas como imaginar que distância e presença não possam se constituir senão em relação?


O arco crítico que devemos fazer é, portanto, não da ingenuidade à mercantilização, da pureza ao mito perdido. Suprimir a complexidade do passado é negar a dialética ao presente: nisto se nega tanto a violência fundante ao jogo, quanto a potência presente do corpo que, por causa e a despeito da financeirização do esporte, se encanta por ele e escolhe moldar a ele seus gestos.

Penso, por exemplo, na imagem que ilustra este texto, recentemente postada e colorida pela página Nostalgia Futbolera. Nela se vê Lev Yashin, conhecido - inclusive por muitos que jamais o viram jogar - como o melhor goleiro da história, comemorando um gol da União Soviética no Parc des Princes em Paris. Muito se falou sobre o privilégio de ver em cores o mítico uniforme preto que o fez ser conhecido como Aranha Negra, criado sob o pretexto de iludir a visão dos adversários, confundindo-se com o fundo do estádio - algo que hoje não encontra existência nos carnavalescos uniformes de guarda-redes. Também muito se falou sobre a estrutura simples do hoje imponente estádio, completamente recaracterizado pelo dinheiro oriundo do Catar, que impõe fluxo e existência ao futebol mundial financeirizado, sediando e mudando de data a próxima Copa do Mundo. Nos dois casos, a comparação é - como o título da página que a coloriu alude - nostálgica: o passado só existe como perda e saudade, o agora é um tempo destituído de legitimidade.

Mas olhemos então para o todo da foto. Em meio aos numerosos anúncios que denotam - desde o pós-guerra - como a financeirização do futebol é um fenômeno inerente à sua própria profissionalização, encontra-se um especialmente sintomático: justamente sobre Yashin, mostra-se um anúncio da Banania, companhia que até a década passada vendia um tipo de bebida achocolatada em pó que donne des forces a quem consuma seu cacau vindo diretamente dos trópicos - reais e imaginários. A empresa patrocinou oficialmente os Jogos Olímpicos de Paris em 1924 e algumas edições do Tour de France, já mais recentemente, o que demonstra sua força institucional.

Na foto, além do logo da marca, vê-se a figura do Ami Y'a bon. Criado em 1925, o símbolo da marca foi - por décadas a fio - este desenho representando o mais comum dos estereótipos coloniais: o negro sorridente, de olhos, nariz e boca enormes, jeito folgazão e desleixado. Para além disso, nosso ami apresenta um chapéu típico das tropas coloniais francesas que atuavam em território africano, particularmente no Senegal e no Marrocos, e que preenchiam todos os dias a comunicação institucional do governo e o imaginário popular sobre aqueles que sujeitos reduzidos a máscaras.

Sobre o Ami Y'a bon já se falou longamente. Figuras do porte de Leopold Senghor e Franz Fanon, por exemplo, apontaram como foi o símbolo desta marca um das grandes responsáveis por veicular estereótipos raciais na França, fomentando um imaginário colonial que retroalimentava empreitadas coloniais em nome da civilização - a Banania, claro, se valia e atuava nas duas partes deste processo. O estereótipo do negro bom e lascivo contrastava com o do negro mau e selvagem, ambos patologizando a diferença em prol da reafirmação do mesmo: removendo a história das pessoas e lugares de onde não se tinha o direito de chamar-se com este nome.

Yashin, símbolo daquilo que se chamaria de futebol clássico e mítico, iluminado pelo Ami Y'a bon, símbolo do colonialismo que é, ele mesmo, chave para se entender a financeirização também do futebol. Os processos se complexificam, se dobram uns sobre os outros. O arco da história - dos povos ou do futebol - não é polarizado, mas dialético em cada um de seus estágios. A imagem é, em si, um testemunho da distância enorme e ínfima do presente ao passado: do preto ao negro existe todo um campo de relações, que a imagem não cessa de colocar como absurdas - ideologicamente - e como harmônicas- na própria composição das cores da imagem, e nos símbolos opostos que elas podem vir a representar.

Para pegar a imagem de Galeano, que abre este texto e de onde partimos, o sol e a sombra do futebol não são oposições, mas consequências do ponto de vista para o qual se olha para o jogo. Eles se engendram. Pela sombra, induz-se a presença do sol; pelo sol, deduz-se a existência da sombra. A chave para se pensar o futebol como discurso não reducionista da história é, justamente, recompor e não dar por encerrado em nenhum momento o campo de relações e os pontos de partida que estão intrincados em cada instante em que o jogo, enfim, se mostre vivo.


Comentários