Para Diego, que pacientemente me corrigirá.
Sendo o futebol - como a arquitetura, a dança, a matemática e a poesia - uma arte do espaço, teria ele direito a uma topologia? Existindo esse texto, a resposta torna-se óbvia. No entanto, partimos (eu e você) desta pergunta justamente porque ela implica uma reflexão necessária e urgente sobre a finalidade - ou a não-finalidade - do jogo, isto é, sobre a razão de sua existência, que jamais pode ser assumida como única, posto que o jogo se dá de diferentes maneiras, em diferentes lugares, por diferentes pessoas, em diferentes momentos.
Noutras palavras - e aqui começam os problemas que inventamos (eu e você) - pensar numa topologia do jogo é tentar redefinir o centro das ideias que lançamos a ele: qual deve ser o seu fundo e a sua frente? Qual é, afinal, a necessidade do jogo? Onde o futebol derrama seus limites? Voltando mais uma vez: após anos e anos de acanalhamento causado por mesas redondas e análises de arbitragem, parece ser urgente pensar no futebol como uma arte do vazio - um vazio pontuado por gols e subdividido por tempos e partidas - um vazio espraiado pelo espaço que se redefine a partir da presença de algo que... não seja, provisoriamente, o vazio.
Nisto, para além do falatório difícil, vive (mais) uma tentativa de afastar o jogo da teleologia, isto é, de tirar o escopo das discussões de futebol dos resultados e dos atos isolados do tempo-espaço em que se dão/deram/darão.O espaço do jogo não pode ser, portanto, o espaço euclidiano. Justamente porque o tempo do jogo não pode ser o tempo cartesiano. E vice-versa. Na prática - portanto, também na teoria - isso significa pensar com Gödel, Heisenberg, Pelé e Garrincha, que o futebol carece de uma ótica em que se assuma que posição, direção, velocidade e tempo sejam variáveis relacionais e contextuais, que mostrem como o estar-no-mundo - uma das formas, afinal, de estar-no-campo - é uma questão de aproximação e tentativa, é uma invenção de contextos.
É preciso que algo seja assumido como inapreensível, já que muita coisa no futebol não poderá, de nenhuma forma, ser observável por quem, no ato, não estava de alguma forma lá. O que não significa desistir de observar, mas assumir que a observação precisa de modelos e de limites para se fazer existir. Tentemos.
O jogo é o toro
Vamos (eu e você) começar nossa análise topológica do jogo a partir, é claro, do próprio jogo.
O futebol, pode-se dizer, é um jogo perfeitamente circular. Diferentemente do tênis, do basquete, da natação (etc), nele é plenamente admitido o empate: mais que isso, esta é a condição inicial da partida. Sendo assim, o jogo está, de saída, circunscrito numa temporalidade apenas brevemente prorrogável, mas fadada ao fim. A um fim que é a iminência de um recomeço. Olhando-se para o futebol de rua - em que o limite do jogo pode ser o tempo ou o placar -, tem-se uma ritualidade em que é possível iniciar indefinidamente o jogo, em que é possível inclusive abstrair o placar para que ele possa reiniciar-se sem interferência, trocando-se os jogadores, às vezes mesmo as regras.
Muitas vezes, principalmente quando um time sagra-se campeão, a marca da finitude da vida corta o corpo deste que aqui escreve na pergunta quando o futebol acaba? O fim de um campeonato é a iminência de seu recomeço, e é inevitável pensar que os times que existam e os troféus já conquistados estejam fadados a ser eternos. Mesmo que o jogo dure necessariamente 90 minutos, mesmo que os campeonatos durem 1 ano ou menos. O Palmeiras ou o Santos terão para sempre os títulos que têm, assim como talvez o Bahia nunca mais ganhe absolutamente nada. E o jogo fadado a recomeçar enquanto isso.
O futebol é, portanto, algo circular sem ser um círculo: é uma dobra circular no tempo-espaço, um túnel finito a ser percorrido infinitamente, um encontro entre a duração circunscrita e a eternidade do recomeço: a essência das instituições e do futebol em si parece espraiar-se pelo tempo do jogo e reproduzir-se nele. Deixará um dia o Cruzeiro de ser azul? A Copa do Mundo de 1982 poderá, um dia, não ser de mais ninguém? O pênalti de Baggio, daqui a alguns anos, entrará? (Recomeça mais uma vez o jogo, recomeça o jogo uma vez mais).
É, portanto, como se temporalidades heterogêneas girassem juntas nesse túnel. Os tempos, os jogos, os campeonatos, as carreiras dos atletas, os times, o futebol. Girando, ao mesmo tempo, em velocidades distintas, como elétrons ao redor de um núcleo. Acumulando-se sem acumular-se, sobredeterminando-se sempre em suas causas e consequências. Pois o jogo recomeça, como o espaço não pode ter limites que não sejam provisórios.
Por isso, é preciso que, além de circular e de tridimensional, a forma topológica do futebol seja vazada no meio. Isto é, seja atravessada pelo espaço vazio - pelo tempo não-contado - do qual se cerca. O eterno retorno do jogo está atravessado de diferentes formas por aquilo que não é o jogo, isto é, posiciona-se diferentemente com relação àquilo que constitui como borda. Por isso, as análises sociológicas que tentam dizer que o futebol explica o mundo - ou vice-versa - falham miseravelmente: elas negligenciam que a passagem do futebol ao não-futebol é sempre tensa, contextual, distinta.
No amistoso contra a França, uma multidão de argelinos invadiu o gramado forçando o encerramento do jogo. O lateral Serginho do São Caetano morreu em campo após uma parada respiratória. Um atacante da Lazio fez um gesto fascista numa comemoração. Centenas foram pisoteados em um estádio em Sheffield. Os aviões de Torino, Manchester United e Chapecoense caíram. O time do Santos supostamente parou uma guerra na África. Etc etc etc. Todos os momentos de retorno do recalcado no futebol - em geral pela tragédia - são a lembrança deste furo na circularidade em que o resto redefine o local do movimento eterno, não cessando sua eternidade. A finitude precisa atravessar o movimento, porque é justamente aí que futebol e contexto se reinventam mutuamente: e entre uma coisa e outra há toda uma borda complexa.
O futebol, chegamos a isso (eu e você) é, topologicamente, um toro. Uma forma circular vazada, atravessada por aquilo que ela não é: posicionada por si mesma no vazio, nunca negando-o, mas moldando-o assim como sendo moldada por ele. Retomando: estamos (eu e você) diante de um túnel em que se gira em velocidades distintas simultaneamente, em que o retorno é eterno e circunscrito em uma temporalidade finita, em que o espaço está posto mas é vazado por algo que o situa diante de todo o resto das coisas. O jogo é o toro.
(Curiosamente, o medalhista Fields brasileiro Artur Ávila passou grande parte de sua vida dedicando-se a analisar toros. Hoje, o Brasil é o país do toro tanto quanto é o país do futebol. O resto você me diz.)
A Tabela de Pelé é a Fita de Moebius
A arte brasileira está para a Fita de Moebius como a matemática brasileira está para o toro. Tomie Ohtake e Lygia Clark consagraram a fita como símbolo das artes plásticas brasileiras. João Guimarães Rosa encerrou sua obra maior com o desenho de uma fita. Imagem privilegiada do Brasil - sobre isso Nuno Ramos já falou o bastante - a marca banalizada pelas tatuagens de "infinito" é o símbolo de uma complexidade que o espaço-tempo tem inerente a si, e a qualquer observador que pretenda a consciência de existir no mundo (no campo, portanto).
A Fita de Moebius depende de uma dobra ou de um corte para existir. Ela traz, tanto quanto o toro, a ideia de que se percorre um ciclo infinito diante de sua finitude, vazada (aqui duplamente) pelo vazio. No entanto, diferentemente do toro, a Fita inverte sua orientação a cada recomeço, isto é, transforma o lado de fora no lado de dentro - e vice-versa, obviamente. A cada repetição do ciclo, tem-se uma mudança de sentido, ainda que a estrutura da forma permaneça inalterada. Ela é a mesma, exceto para quem a experiencia (haverá objeto topológico sem a sua experiência? O futebol diz que não).
Por isso, me lembro de Pelé.
Pelé foi o melhor jogador de todos os tempos não pelos mais de 1200 gols que fez na carreira - eles são, em verdade, consequência de quão bom era Pelé. O que fez o rei do futebol assumir seu trono (seu toro) foi, muito mais, sua capacidade de mover, com sua força e sua imprevisibilidade, as posições pré-estabelecidas no jogo - nos mais diversos níveis em que se pense nisso. Pelé inverteu a catástrofe de 50 no apogeu de 58; ao cabo de quatro copas, Pelé colocou o Brasil em um panteão místico rapidamente transformado em sina; Edson convertia-se em Pelé e depois em Edson; os incontáveis dribles de Pelé faziam com que um corpo sólido se mostrasse subitamente vazado, e então sólido uma vez mais; Pelé era ao mesmo tempo o grau zero da democracia racial e seu ponto de absoluta insustentabilidade. Etc etc etc.
Mas creio que essas passagens de reversão e continuidade possam ser sintetizadas em uma das mais marcantes características do jogo do rei do futebol: a chamada tabela de Pelé. Abusando de sua explosão, comumente se viam jogadas em que Pelé jogava a bola contra as pernas de um adversário (ou mesmo do árbitro), recebendo-a de volta em uma posição privilegiada para avançar. O que ocorria, portanto, era a súbita e inesperada passagem do adversário em companheiro, do inimigo em colega, do rival em aliado: algo que durava um único gesto, mas que era crucial para que as posições iniciais, ao se confundirem, se reafirmassem. Um adversário só pode ser um adversário porque poderia ser um colega de time. O Santos só pode ser o Santos porque poderia ser o Corinthians ou o São Paulo. O que a tabela de Pelé faz, em sua dialética precisa e em sua figura topológica, é lembra que toda relação de diferença parte de uma relação de igualdade, e vice-versa.
Assim, a Tabela de Pelé lembra um fato imprescindível para o futebol, algo emulado na necessidade de mudança de campo a cada metade do jogo: o espaço é reversível, o jogo se constitui a partir de uma dobra ética no espaço. Isto é, espraiada no tempo. Basta mudar as cores das camisas e então os jogadores se confundirão sobre qual lado defendem ou atacam eles e seus (supostos) companheiros: as posições não estão dadas como uma natureza pura, elas se constituem no jogo, em ato. O que faz a Tabela de Pelé é girar nesta estrutura básica do jogo, utilizando-a como possibilidade e como limite: o verso transforma-se no reverso a partir de um ato, e, no instante seguinte, faz-se verso outra vez.
Aí está a grandeza de Pelé: explorar mais do que qualquer um a complexidade topológica do jogo, inserindo-a no ritmo em que gira e repete-se o jogo. É como se, dentro do túnel do toro do futebol, Pelé não se contentasse em girar junto aos demais, mas progredisse sempre em ziguezague, em loopings, apoiando-se na bordas do jogo. Pelé foi, em essência, um jogador da topologia: por isso os gols que ele não fez são tão ou mais famosos do que aqueles que ele fez: ali parecia sempre inaugurar-se uma possibilidade do espaço-tempo até então não pensada. Maior grandeza é perceber que, em latência, ela sempre esteve lá - como reverso inevitável de todo verso possível.
A ida e volta de Garrincha é a Garrafa de Klein
Garrincha foi uma dobra na dobra.
Em um mundo que grita ordem como o nosso, o desafio topológico das pernas de Garrincha jamais seria aceito. Mesmo naquele mundo, aliás, ele foi um pouco menos do que consentido: apenas tolerado, sobretudo porque conseguiu ser efetivo particularmente em 1962 - a despeito das escapadas da concentração chilena. O resultado deste processo foi o fim de carreira e de vida melancólicos de Garrincha, imersos no resto simbólico de seu jogo que queria ser mais (ou menos) que o jogo.
Em campo, Garrincha ia e voltava. Para ir e voltar outra vez. E então uma vez mais. Diferentemente da lógica básica do drible - e sobretudo do drible de Pelé -, a ginga de Garrincha não parecia ter um objetivo, nem mesmo aceitar que o gol seria uma necessidade do jogo. Parecia, por vezes, que Garrincha terminava a jogada por mera obrigação ou coerção social. Justamente por algo ao qual ele um dia se fartou.
Garrincha voltava e ia. E o fazia exatamente da maneira como seria previsto que ele fizesse, e justamente por isso. Nos instantes em que assumia seu jogo, parecia promover-se uma espécie de suspensão no movimento do jogo, no giro do toro: como se ali, naquele momento, dentro e fora da lei, Garrincha estivesse quase do lado de fora. Ainda que não pegasse a bola com as mãos, ele tampouco visava o gol; ainda não estivesse fora das quatro linhas, ele tampouco operava a partir do tempo do cronômetro. Os instantes de ida-e-volta-e-ida eram instantes de quase futebol, ou de mais do que futebol.
Por isso, a reversibilidade do espaço-tempo em jogo ali não parecia estar contida em movimento algum: o eterno retorno estava suspenso. Note-se então que estamos (eu e você) diante de uma dupla fita de Moebius: o espaço-tempo reversível do jogo estava confrontado com o espaço-tempo reversível do não-jogo, em uma infinita continuidade entre os dois locais/objetos/modos de existência. Na ida-e-volta de Garrincha, o lado de dentro é o lado de fora é o lado de dentro, sem que se possa marcar uma única aresta ou dobra precisa deste contato sem encontro.
Aí está nossa figura topológica derradeira: a Garrafa de Klein, essa quarta dimensão cuja observação traz consigo a necessidade da abstração. Nós vemos (eu e você), com a consciência de que não podemos ver. Alguém, que não poderia ver, um dia imaginou. Garrincha, que não o via também, o fez. Para além do jogo de Pelé que mudava a orientação do espaço, Garrincha criou o jogo não-orientável: a consequência é, justamente, o seu lugar sempre próximo das linhas de fundo e laterais, quase fora do gramado. Até justamente seguir sua vida sem que precisasse da contingência do gol, indo-e-voltando-e-indo em seu estar no campo (portanto, estar no mundo).
O mundo é um lugar vazio, repleto de coisas
Existindo corpo, existirá uma fenda no mundo - não como uma descontinuidade ou uma oposição. O corpo faz mundo, sendo-o. Isto é, o corpo reatualiza as possibilidades do espaço-tempo por vivê-lo sem síntese, em suas dobras. Sendo o futebol um jogo repleto de furos, é ali onde o corpo pode se manifestar plenamente em sua vida no espaço: isto é, em sua possibilidade de vazio. As coisas existem porque elas poderiam não-existir. No futebol, isto se manifesta na impossibilidade de se preencher as ações com qualquer tipo de moral, lição ou narrativa óbvia: o espaço só se manifesta em relação e contexto, sem esquema pré-estabelecido que perdure diante do ato de tentar observar (aí está a lição de Heisenberg e Pelé).
Por isso, é claro que nós (eu e você) estamos correndo atrás de algo que não se manifestará neste texto. Se a quarta dimensão é a suspensão garrinchiana provisória do jogo no jogo, sua descrição é de fato impossível. Tivemos aqui um esforço em relatar aquilo que é um metaesquema sobre o mundo, e que o futebol faz dar vazão e transformar em lei - em um novo tipo de lei. Não se pode dizê-la simplesmente: deve-se vivê-la, e aí também por meio da palavra como forma do corpo estar no mundo (e, portanto, no campo).
O logro de pensar uma topologia do jogo está nisso: inseri-lo radicalmente no mundo, em sua matéria maleável e no hiato que a vivência dá a ela. O futebol não explica o mundo, tampouco o inverso é verdadeiro: as fronteiras entre ambas as formas de existência são fluidas, disformes, difíceis, às vezes meramente pensáveis. Como um jogo nunca basta em si mesmo (sempre virá o próximo), um texto, uma experiência do real, um testemunho tampouco bastam. Giram uma vez mais. Sem se acumular, mas existindo enquanto é possível que assumam uma forma.
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